29.5.06

TORÓ

A mata atrás do quintal da casa era densa, e a última rajada de vento noroeste acabara de derrubar o cobertor do varal. Melhor que o tirassem dali antes que o céu vazasse e as crianças arroubassem suas brejeirices na água morna daquele dezembro. A lama dificultaria a relavagem, se bem que a manta não pediria uso ao menos pelos próximos 5 ou 6 meses.
O cheiro terroso do café fresquinho também antecipava aquele toró das 3 e meia, e vovó decidiu improvisar bolinhos de chuva (até mesmo acreditando que o açúcar e a canela prevenissem resfriados).
A mãe quis argumentar que apenas haviam acabado de almoçar, e que nem faria bem.
A vó ralhou com ela. As crianças eram digestivas.
Seria o ensejo para uma epifania familiar, um deslocar-se repentino da espiral da vida para outro lugar, uma alteração daquelas imperceptíveis e que, no entanto, as crianças não esquecem jamais. Não fosse a ausência. A compreensão assomava lentamente, como ao revés da partida do pai.
Um primeiro raio luminoso rasgou em dois o firmamento, agora escuro. Não bastasse sua aparência, já temível, mandou à frente de si um brado gutural de trovão, e ambos assombraram mais como metáfora.
A vó esquecia a coberta, e demorava-se na panela dos bolinhos. A mãe agora ajudava, deitando a toalha bonita sobre a mesa e dispondo canecas, pratos e talheres. Chamava as crianças para dentro, e que deixassem a algazarra para amanhã, pois aquela era tempestade perigosa, e além do mais já esfriava.
(Esfriava também o vento ou a sensação que percorria a espinha da mãe lhe era exclusiva? Somente a vó já sabia, desde outros temporais.)
O óleo demorava a dourar as gostosuras, e a mãe impacientava-se. Somente a vó conhecia o ponto de fritura, e podia apreciar a beleza da ação do tempo sobre as bolinhas de farinha.
A vó e o tempo tinham sido amantes.

18.5.06

PROJÉTIL

O pior de tudo, depois de tanta soberba
é sentir-se um prójetil
bobo, sem voz, mandado
a sentir pena de si

11.5.06

MORTE

Ontem meus sonhos eram de morte
E por isso, e por todo o resto
Talvez seja muita sorte eu ainda estar aqui
Mas e daí? É sempre assim
o azar sabe que não presto
e que seu jugo não tem poder sobre mim...