30.6.04

DO ORIGINAL 06.01.99

Deu-nos livro aberto. Cento e noventa e duas páginas em branco indiscutível.
Pus-me a escrever – sua mão sobre a minha.
Começamos narrativa simples, polvilhada por silêncios longos, de descanso, e descrições pastéis.
Ao tempo de um susto, tornamos violência a violação. Começamos densa trama de emoções inconfessáveis.
Aperto o lápis – sua mão quase foge.
O leitor – ansioso - acompanhava cada letra em busca dos tijolos-significado que iam construindo o edifício alto do sentido.
Não lhe pediram cuidado, mas que tivesse. Um livro grande demais sempre é risco de decepção. O drama só termina no que desvelam as entrelinhas, nos não-ditos e malditos. Qualquer desenlace é possível, desde que sempre mantidos claros os motivos do autor.
Ao fim da última frase, traído o leitor. Perdera tempo com obra ordinária. Não fora avisado, mas que fosse. Comprara um livro que não lhe pertencia.

26.6.04

FEIRA LIVRE

Na feira livre, de óculos escuros.
As cores e os cheiros (se pudesse sentir os cheiros). Berros improvisando melodias apressadas. Já tarde, quase meio dia. Hora de sujeira.
Senhoras de alguma idade, vida sem nexo, nem sexo - seu orgasmo semanal. Jovens donas de casa desfilando belezas improváveis, opulentas e gostosas, belezas de chinelo e camiseta desbotada de Cândida. Na barraca ali, como que abusando da atenção que chamam, provam doces maçãs, muito mal lavadas, e tentam o feirante tarado.
Numa esquina, o homem da tapioca, calça de linho e camisa de botões. Impávido, nem nota a turbe. Homem respeitador.
Noutra, o não-autorizado vende alho, limão, maracujá – pequenos e singelos aviltes ao erário.
Calma lá! Um congestionamento de carrinhos. Todas olham pra baixo e procuram não enganchar as rodinhas. Algumas têm pés lindos.
A feira tem fruta, tem legume, tem verdura, tem ovo. Mas tem brinquedo, água de coco, lingerie, queijo, macarrão para fazer yakissoba, homem que conserta panela, homem que conserta máquina de costura, pastel, caldo de cana, ímã de geladeira, toda sorte de temperos, erva para emagrecer, erva para curar, erva para ir ao banheiro.
A essa altura do campeonato, a dondoca que se recusa a acordar cedo encontra a moça do cortiço que espera em casa o preço da feira baixar. As duas mastigam, lado a lado, na barraca do pastel. Na feira tudo é meio relativo.

20.6.04

ESTUDO

Criança estuda porque pai e mãe querem. Não gosta, vomita, pensa que mata a professora mil vezes.
Depois de tantos anos sob as asas da escola, algumas crianças inocentes se tornam adultos apaixonados pelo saber, e isso não é nada bom. Quem apaixona, obceca. Baba, defende nas circunstâncias menos razoáveis. Escudado por referências bibliográficas, fulano é capaz de passar uma vida tentando provar que a idéia dele é mais legal e que os outros são todos uns bobocas.
Algumas crianças vêm de uma família muito opressora. Uns 12 por cento. Essa turminha quando cresce costuma saber conviver apenas com o seu mundo interno, não com outras pessoas. Usufruir a companhia dos superinteligentes é consolo à merda da vida que se leva.
Um pouco maior é o grupo das crianças que se tornam adultos que não fazem sexo. Sigmund já dizia: a energia da vida é sexual, mas pode ser virada outra coisa. Não trepa, pega o livro. Alisa a página, vira uma e outra. Preenche o buraco de outro jeito.
No fundo, bem lá no fundinho, tem sempre muito de carência. Adultos se juntam por pouco, quase nada, e de repente já estão falando do catarro da bronquite da filha.
Magistério é sacerdócio. Ser professor requer, muito mais que paciência, misericórdia.

19.6.04

TÉDIO

Minhas horas às voltas com o mundo patético.
Meu tédio de mal com as horas, que não passam.
Uma solidão cortante, um nada doendo no osso.
Ódio consola.
Mulher não olha pra mim. Homem quer me ver pelas costas. Mãe não. Mãe é Virgem Maria, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Nessas horas, música é barulho, arroz com feijão é crack e heroína. E eu sou um deus, que olha pra tudo que criou e vê que tudo é uma merda.
Vai precisar de exorcista dos bons. O cão, quando sai das entranhas do inferno, não vem pra brincadeira.
Tudo toma outra proporção. Muito. É excesso. Mas eu não chora nunca.
Eis o ponto vital, seu cuzão! Eu não chora. Porque, mesmo fudido, ainda estou na carne e no molho do mundo, e juro por tudo que é mais sagrado que quero casar com essa moça que está sentada na sala ao lado. Com festa e tudo.

5.6.04

VERGONHA

Estava aqui já há horas, numa tristeza meio contida, meio autoconsciente. No lugar dos meus olhos, me escapando.
Foi só alguém abrir a porta do quarto. Olhei-me, como fosse quem me olhava, não gostando do que ela via. Senti neste súbito que ela poderia sentir até pena de mim, sem exagero. Tive pena de mim. Chorei por uma tristeza outra, carne fatiada sobre nervo exposto, que fez aquela tristeza primeira parecer de sabão.
Vergonha: perceber que o outro vê aquilo que eu veria no espelho.

3.6.04

CONFLUÊNCIAS

Tomaste um toco, amigo meu?
Repensaste a vida naquela hora?
Nada fez sentido? Entendo. Tão normal...
A um passo do momento em que parece que podes tocar as luzes, desfazer os nós, romper amarras, e o chão sobe correndo até bater a sua cabeça.
Dói muito. Aquele estalo seco, aquela aflição.
Puseste o medo na pauta da tua próxima ilusão? Haverás de considerá-lo, sob pena de expulsão do mundo dos vivos.
Não há nada de errado contigo, fora o de sempre; o destino é que dorme no ponto.
Saíste sem bater a porta, aquela diaba? Barulho?
Viverás mesmo este estar consigo constante, este saber sem tema, implícito, até que a morte te separe de ti.
Esperaste o bastante? O suficiente, ao menos?
Não tens o dom de fechar feridas, não queiras inventar moda. Há questão de merecimento, mas somente em outro nível. Aqui, não. O que entope aqui são confluências. Nem acaso, nem mérito: um pouco de tudo é igual a nada. A boca seca e o falar estúpido influem; porém, o tempo, alheio ao teu querer, também. Tua condição de vida pouco invejável atrapalha; não mais, contudo, que os caprichos de um coração que não dominas.
A admissão das confluências é catártica, exorcizante. Deprime, o que é bom, aliviando pesos da alma.
Fugiste? Se não, aproveite e fique por aí. O mundo gira. Tua vida não é. Tua vida é estar sendo. Cada passo teu, cada cinza fora do cinzeiro, cada sol e cada frio, cada gesto pequeno, tudo muda a confluência.
Quem me dera pudesse te prometer, fazer um compromisso taxativo! O imponderável é da natureza das confluências...
Mas – quem sabe – outra hora vem, daquelas de tocar as luzes, desfazer os nós, e te encontra em outra conjunção.
Ninguém nasceu pra ser feliz, mas, talvez, um dia tu venhas a ser.
Até lá? Tu escutas o ranger das portas, os passos de tamanco no corredor. Tu enxergas as paredes se acomodando, espaços mudando de lugar. Tu sentes o calor dos dias frios, a intenção das paisagens.
Ficarás sozinho por seres único. Porque, a partir de agora, só tu saberás o que todos esperam: confluências.