22.12.05

ESTIMATIVAS

77% das crianças entre 0 e 7 anos acreditam em Papai Noel. Destas, 89,5% já viram 5 ou mais pessoas interpretando o bom velhinho.
56% dos casos de osteoporose começam até os 60 anos. Destes, 31% quebram o fêmur antes do fim da vida.
91% das mulheres solteiras sonham em casar de branco. 62,8% realizam este sonnho.
27,4% das hortaliças consumidas apresenta algum tipo de contaminação. Destas, 36,1% gerará algum tipo de doença.
34% dos homens acima de 30 anos já tiveram duas ou mais experiências homossexuais. Destes, 68,2% repetiriam se tivessem oportunidade.

30.11.05

CRIAÇÃO

Está na Bíblia:
A mulher não estava nos planos de Deus; estava nos planos de Adão.

29.11.05

ELA

E depois, meia-noite, isso se ela voltar, encontrará outro homem. A mesma cama, e um vagabundo outro, porém. Desperto, com os olhos molhados, perto de chorar.
Sem acender as luzes embutidas no teto de gesso, ela identificará a silhueta, por mais escura que a própria treva que banhará o quarto então. Só de cueca, o filho da puta, com a cabeça apoiada num braço, feito travesseiro.
Lembrará do pai. Lembrará do quarto dos pais e de suas interdições. Lembrará da fresta na porta do quarto dos pais.
Irá ao banheiro, e só lá permitirá à luz elétrica sua vocação reveladora: seu rosto no espelho. Escorridos em preto saindo de seus olhos, uma boca rosada (muito além do contorno dos lábios), cabelos desgrenhados e úmidos. Sim, aquele homem poderá ser a salvação ou a danação eternas. Há poucos metros dali, na escuridão do quarto. Aquela silhueta amoral e vivificante. Saberá quando a hora chegar.
De tonta, terá convulsões. Primeiro, receará o dia em que o conheceu. Depois, crerá nunca tê-lo conhecido, e terá mais razão. Nunca mais sairá daquele banheiro com vida, no que fará muito bem.

22.11.05

QUANDO

Quando a única se faz outra
Quando a sã se faz louca
E a douta se faz tola

Quando a pele se faz febre
Quando o peito se faz pouco
E a sede se faz carne

Quando o olhar se faz lânguido
Quando o sopro se faz plácido
E o sono se faz macio

Quando tudo enternece a alma
Quando a mão desconhece a palma
E o luxo se faz lixo
E o coração se faz caixa
Pra guardar os amores

Que um dia vem
Noutro dia vão.

19.11.05

CIVILIZAÇÃO

Agora o sentimento vazio que assombra
e emudece as calhas de um cerebelo macio
esconde onde adormece
as raias da loucura servil
que assola os rumos do mundo
em prece
e sob vaias vorazes

Esquece
guarda somente o medo
(esse teu aliado)

Morre um pouco por vez
primeiro as pernas
depois a alma

Altiva é a estupidez
que gira os motores
das falas mais mudas
e tira da inércia
brados confusos
que um dia serão
o fundamento
da nova civilização

22.10.05

DORES

Com o humor carcomido pelas inextinguíveis dores subliminares, Joca ensaiava um assovio no intervalo entre as calçadas direita e esquerda. Receava-lhe a idéia de contar a alguém que seu corpo tornara-se nos últimos anos um palco apertado para que pequenos grupos de teatro amador encenassem pequenas tragédias gregas. Uma dor de cabeça fininha como xixi de passarinho; dores intercalando as diversas articulações - joelhos, tornozelos, pescoço, cotovelo, falanges; e, mais recentemente, a aguda manifestação de uma fístula anal.
Se faltavam os brados e clamores dos grandes espetáculos, a exemplo do que acontece na fase terminal de um câncer, havia a constante presença de atores que declamavam Sófocles desfocados e sem vida, ainda sem a impostação necessária na voz, para ínfimas platéias, quase sempre compostas por amigos e familiares mais próximos.
E, como receasse, então exercitava um acostumamento.
Como a roupa que se veste violentamente sobre a pele quase etérea de um recém-nascido; como um relógio de pulso cuja pulseira começa a comprimir; como calçar um sapato de número menor - todo incômodo se acomoda. O sujeito humano tinha por condição a possibilidade de adaptar-se a quase tudo. Inclusive à merda.
A dor era só mais um nome; só um nome.

21.10.05

SUICÍDIO

Sem brincadeira, eu acabei de pensar em me matar.
Ia pular aqui pela janela mesmo, do 11º andar.
Por falta de motivo, achei o clima propício. Uma tarde de sexta-feira; um calorzinho bossa nova, de acumular na testa gotículas de suor; um sonzinho do Smiths.
Mas sempre depois de um suicídio a família e os amigos dão de buscar explicações... explicação eu não daria; sequer deixaria bilhete (a impressora estava sem papel). Investigariam.
Aí, quando dessem de olhar o computador, ainda ligado, e percebessem que a última música que eu ouvi foi "The boy with the thorn in his side", todos, sem exceção, passariam a achar que eu, esse tempo todo, era gay e não tinha coragem de assumir.
Mudei de idéia
ESPELHOS

Estados e situações
e roupas usadas
espasmos
largados, viados
cigarros fumados
içás vomitados
os braços sangrados
as sortes, massacres
escarros bastardos
filhotes mirrados
estalos, espaços
chicles mascados
engasgos safados
angu empapado
um galo sambado
e desenfreado
lançou-se ao muro
do ninguém-me-quer
esteve na vida, tão longe de tudo
mulato saltado
virou a notícia
rasgado, matado
na porta do bar.

14.10.05

ALMA

Se era pra ser tão indiferente, melhor seria ter ficado em casa. Não sujaria sequer o párabrisa do carro; muito menos a alma.
Tão perto da lama, que afastasse ao menos o longo vestido branco de chita; mas não. Foi de picareta na mão, a desbravar a argila demudada em barro.
Até os olhos ficaram marrom.

11.10.05

CAIPIRA

Da transversa se disseminava uma pasmaceira doce. Cá, onde já fumávamos as cigarrilhas aos pares, tão lindas eram as cinzas vertidas no calçamento, e tão bem cozidas as fumaças que abrumavam, a dor ainda era lenta, quase perdida – uma dor de cabeça debaixo de um chapéu de palha.
A poeira não era mais da secura da areia, do calcário, do limo, da argila. Era mais dura e melosa; indícios da cidade grande.
A pangaré puro-sangue mascava um capim quase seco, com cara de ontem, que graça não devia ter mesmo nenhuma. Mas dera de ser assim, oras bolas, o que mais a bicha haveria de fazer?
Fazia graça de nós, tremelicando às vezes uma porção pequena da anca marrom pra espantar algum mosquito. Mostrava como se fazia sem fazer, sucedendo algo sem deixar a passividade.
Apeada, olhava dentro dos olhos nossos, mascando também o tempo.

10.10.05

DEFEITOS

Posso ter três mil defeitos, mas entre eles certamente não se encontra a danosa tendência a tolerar defeitos.
Posso - sim - ostentar os mais impublicáveis, e justificar sua manutenção recorrendo às determinações involuntárias, aos quereres inconscientes, pelos quais o homem médio não precisa se responsabilizar há pelo menos cem anos. Mas não devo admiti-los nos outros, quando estou de plena posse de minha capacidade crítica.
Eis: uma intolerância referendada pelo bom senso.

6.10.05

CLARISSE

Clarisse Morávia gelava um coração ardente só de olhar de viés.
No oposto desse diâmetro, sua desejabilidade exalava até pelos calcanhares. Sem exagero. Mocassins ou Mules, botas e tênis - acredite, mesmo uma sandália havaiana - valorizavam tão grandemente este detalhe, em outra dona completamente desinteressante, que nem o mais intrépido estoicismo se safava. Uma redondilha em si.
Ah, os vapores que se faziam perceber... Nunca quisesse ouvir o som do salto estalando no piso de madeira. Nada mais hipnotizante. Nada.
Naquele dia, o próprio couro sobre o peito do pé, suas pequenas nuances de movimento, o balançar dos dedos ali debaixo, tudo era motivo.

5.10.05

TEKS

Vida entre fauna e flora, direita e esquerda, Apolo e Dionísio, bem e mal, claro e escuro, côncavo e convexo, Red Label e Black Label, amor e paixão, saúde e doença, céu e inferno, homem e mulher, Deus e Diabo, destro e canhoto, sim e não, jóia e bijuteria, Davi e Ronald Golias.

29.9.05

EXAME

Fui fazer um exame hoje de manhã e constatei, para minha total surpresa, que meu sangue não é vinho, mas magenta escuro. A enfermeira pareceu não ligar, ou nem perceber, pois o enfiou numa ampola translúcida e sequer se deu o trabalho de chorar por mim.
Nem precisava fazer o exame; eu estava com câncer, e devia ser terminal. Sangue magenta é câncer, e terminal.
Só falta o xixi ficar bege.
Aí, eu corro pro hospital, sem ambulância, pocototó-pocotitó, e vou me desfazer pela rua, cortando as solas dos pés nos cacos de minhas próprias unhas. Aí, quando chegar lá, não vou ser mais. Vou rir à beça do médico me procurando, como fantasma que serei. Pegarei um copo com 200ml de água e atirarei no rosto do médico, bem no meio dos óculos, pra embaçar. Aí, vou pro céu, e não quero zoeira, porque eu quero dormir.

5.9.05

ESPINHOS

Pois foi então que protuberaram dois pequenos espinhos nas vesículas biliares dos homens a cujas esposas costumavam acorrer os energúmenos mais lascivos.
E fez-se um sol de encharcar a fronte da noite de vergonha, principalmente ali, na cidade grande, onde a referida dama se adornava com parcos faróis de estrelas.
E o abuso se tornou unívoco ao açoite. Pudera; trajava a noite uma bata que externava contradições.
Ninguém por ela andasse despreocupado, muito menos sem camisa. Hoje o orvalho seria ácido corrosivo.
Entranharia as peles, só por vingança, a lhes ensinar a dor.
Porque pouco importava que fosse corna; mas preterida, nunca.

26.8.05

ROCHA

Tinha nela uma presença de consistência atemporal. Ou eterna.
Agigantada, pétrea.
Impossível desbastar, impossível desbastar!
Era apoio para amarrar os sapatos, ou mesmo limpar os pés.
Fazia sombra. Podia ser recostada.
Em sua superfície de aparência carbônica, tomava impulsos para meus vôos.
E repisava suas reentrâncias em meus pousos de emergência, agredindo, por vezes, a fauna local.

Mas tudo vira pó.
Uma explosão, a radiação, o vento, o terremoto - um dia chega.
Quando fui ver, não estava mais.

14.8.05

MÁGOA

Que o amor mande embora
a mágoa que hoje mora
no peito do meu bem.

13.8.05

COISAS

Há coisas que aborrecem.
Há coisas que chateiam.
Há que coisas que fazem perder a calma.
Há coisas que fazem perder o controle.
Há coisas que fazem pensar que o esforço em mantê-las não vale a pena.
Há coisas que desanimam.
Há coisas que entristecem.
Há coisas que não têm graça.

E há as coisas que arrasam.
As coisas que derrubam.
As coisas que fazem tremer a alma.
As coisas que fazem perder o sentido.
As coisas que fazem pensar que todo esforço para evitá-las teria sido pequeno.
As coisas que paralisam.
As coisas que deprimem.
As coisas que não passam.
E que não têm perdão.

8.8.05

FINDO

Contei o que houve para o Destino
e ele desatou a chorar.

4.8.05

RESTOS

Sempre pareceu impossível compreender um mal-estar que sinto na parte da manhã. As pessoas me parecem diferentes, estranhas. Seria a luminosidade peculiar? O restolho de sono?
Não.
Descobri que me dá nojo a impressão de que as pessoas acabaram de cagar.

2.8.05

AMANTES

Neste exato momento, há mil amantes
sentindo-se amadas
por mil canalhas.

27.7.05

PLATÔNICO

Também não é platônico dizer que a linguagem só serve
a comunicar uma cópia - mal feita - das afetações?
Que é a porta do mal entendido? Que o homem a habita,
nela não se contemplando, contudo?
Que a única confiança é de si para si, e que o outro é, não inferno,
mas dissimulação?
Que entre o saber de ofício e o dizer explícito
há mais do que sonharam nossas vãs sabedorias?
Também não é platônico?

14.7.05

AVISO

Desculpe incomodar, mas é que fazem 3 jogadas que você caiu no meu Hotel na Vieira Souto, me deve 320 dinheiros.
Já disse que aceito a Companhia de Viação e o Brooklin como pagamento.

7.7.05

PADRE

Já de volta pro confessionário, sua malcriada! Tem pena do padre lá esfolando os joelhos, não?!
Vai, cospe esse chiclete no lixo e volta lá.
Ora, agora essa... Não te dei educação? Eu vou enfiar essa língua de volta na tua boca e vai ser na marra. Chega de pular assim, besta, tá aparecendo a calçola!
Sai daí! O que você tá fazendo, criatura?!
Desce já desse altar!
Não faz essa cara que aqui não é a zona, desalmada!
Baixa esse vestido, trolha de Deus!! Não mexe na calçola!! Deus do céu!!
Tira a mão da racha, putaquipariu!!
Que qué isso, virgem santíssima?!?! Pelo amor de Deus, pára com isso!
Caralho, cê tá mijando no altar! Maria reverendíssima, tende piedade!
Cê tá rebolando por quê, diacha?! O mijo tá escorrendo até o pé de São João da Cruz, lazarenta! Tu tá fedendo o pé do santo...
Não! Não caga, porra! Tu vai pros quintos dos infernos!!
Pára de chutar essa merda na minha cara! Põe essa roupa! Eu vou te matar, sua maldita!
Impura! Condenada! Blasfema!
Padre!! Padre!! Socorre aqui, santo homem!! A Diléia tá variando!!
Padre! Padre!
Padre?!
Tava batendo punheta, cacete?!

6.7.05

SHRIMPS (com DB e NP)

Let´s find the shrimps right now
Let´s find the shrimps right now
Let´s find the shrimps for you and me.

5.7.05

AUTO-ANÁLISE

Freudiano como não sou, talvez demande, ainda assim, uma auto-análise. As análises bem se prestam a tratar inicialmente emergências muito enredadas.
Depois, há que se buscar o sentido, esteja ele oculto por afetos inomináveis, ou mesmo por aparências impossíveis. Não importa. Há que se buscar acolher o sentido, sem o que tudo o mais deixaria de valer a pena.
Antes, porém, não é em vão aproximar-se analiticamente, para fazer aparecerem as primeiras pontas do fio em questão, cujos nós se sugerem inssolúveis.
Analisar implica decompor, desfazer e rever as conexões, algo bastante útil quando ainda não se tem como saber pra que lado o fio tenderá.

4.7.05

MALES

Há que se concentrar nas angústias, nas perdas,
nos momentos de tristeza e de atribulação
Há que se manter coeso, pra que essas dores não dissipem,
como nuvens traiçoeiras, dissimuladoras dos temporais.
Há que se burilar os rancores; os medos, fazê-los muitos.
Há que se duvidar da vida, e a cada vacilo dela, ameaçá-la
pois a vida teme mais a seu algoz que o tempo à quietude.
Há que se fazer presente nas indecisões do tempo,
surpreendê-lo com cronômetros e rugas.
Há que se implicar os males,
na busca da perfeição inexistente, mas bem-vinda
da primeira vez de tudo.

23.6.05

CARLOS

Carlos falou que nossas dores não vêm das coisas vividas, mas das sonhadas que não se cumpriram. "O viver, em si, não dói" - ele disse.
Será mesmo...? Não entenda a dúvida como desafio, Carlos. Pelo amor de Deus, quem sou pra discordar de ti?!
Porém, vejamos. Não sonhe tanto, viva apenas a vida que se oferece para ser vivida a cada momento, e pouco sofrerás - até aí, tudo bem. Parece óbvio, até, não parece? Simples como um verso: Carpe Diem.
Mas talvez minha alma não seja páreo para a tua, eis a questão.
Eu sei que o mágico tenta chamar a minha atenção com a mão destra, enquanto a esquerda faz o truque. Mesmo assim, prefiro o encanto de ver o improvável coelho sair de dentro da cartola a descobrir o fundo falso.
Como haveria de iludir-me menos, cancelando desta forma também as grandes expectativas, os arroubos de euforias impossíveis, quando é do sonho que me vem o sentido pra continuar vivo?
"Mas dessa forma sofrerás, menino! Não lembra que o sofrimento é opcional?" - já posso ouvi-lo...
Desculpe, Carlos, mas não sou nada sem minhas expectativas infundadas.

21.6.05

SOBEL E SEU SOLIDÉU

Debaixo do solidéu de Sobel
Há mais piolhos
que em todas creches brasileiras

15.6.05

DEAR FRIEND,


I am mr Abbas Aziz, I am 67years old. I am a citizen of saudi arabia, but I am resident in Dubai.I was born an orphan and almighty Allah blessed me abundantly with riches, but I am not a happy man. I have no wife and I have no children. As at now I am seriously sick, I am presently in hospital suffering from lung cancer and I had patial stroke which has affected my speach. I can no longer talk and I am also deaf. Half of my body is paralysed. The doctors say I have about 2 mounths to live. I send you this mail with the help of my private nurse, assisting me.I have little time so I have committed it to spreading my wealth towards better health care for mankind. in the hospital where I am, I have given the management us$15million to upgrade and build a new cancer reseach facility. I dont know you, but due to my condition i am contacting you with the hope that you will carryout my wish for the sake of humanity.
I have us$6million in gold deposited with a security deposit company. I want you to take custody of the gold, sell it and use the money to build an orphanage in your country. You will name it Aziz orphanage home. You must follow my wish for it will gladen the heart of almighty allah.If you are ready to do this and carryout my wish, then send me:


[1]your full names

[2] your phone/fax number

[3] and your residential address.

I will be in contact with you. I await your reply.

Abbas Aziz.

14.6.05

NAMELESS

um sentimento áspero, duro
um rubor quente na pele do peito, acima do esterno
um ofegar ainda brando, irregular
uma boca sisuda, uma voz sem ânimo
uma postura caída, um desleixo
um titubear grosso, corrente
uma raiva tímida, quem dera brejeira
uma decepção doída, uma dor incauta
uma ruptura descrente
um sair renitente
um não sem dono
um terror sem nome

13.6.05

SOBRE O DIA DOS NAMORADOS

Na manhã do domingo passado, estava tomando um café com leite no balcão da padaria quando reconheci, sentado dois banquinhos pra lá, padre Valério, comendo torta de palmito com guaraná.

- A sua benção, padre.

- Deus te abençoe, meu filho.

Quando assoprei da camisa os farelos de torta que voaram da boca dele, já estava decidido a lhe perguntar algo. A presença de um sacerdote ali não podia ser mera coincidência. Talvez, uma resposta significativa às indagações, já antigas, que retornavam volumosas desde o início daquela manhã. Ou não, como eu iria descobrir.

- Que dia é hoje, padre?

- Domingo, filho.

- Não, do mês. Quer dizer, hoje é 12 de junho, não é?

- Sim, dia dos namorados.

- Isso! E por que 12 de junho é Dia dos Namorados?

- Não sei, filho.

- Foi por acaso que colocaram bem na véspera do Santo Antônio?

- Não sei mesmo, filho...

Desisti. O padre Valério não tinha mesmo muito jeito pra conversas. Além disso, tinha o péssimo hábito de falar com a boca cheia.

Continuei pensando sozinho. Lembrei do Anacleto.

Há tempos, o Anacleto, decepcionado com a maré-baixa de sua vida amorosa (que já durava alguns anos), decidiu investir - segundo suas palavras - na “sabedoria popular”. Simplesmente esqueceu os ditames da ciência e do bom senso e fez uma promessa para Santo Antônio. Se conseguisse boa perspectiva de relacionamento sério até 13 de junho daquele ano (faltava mês e meio), prometia nunca na vida trair sua mulher. E não pense que isso não é promessa que se faça, porque você não conheceu o Anacleto. Tal sacrifício seria digno da compaixão de qualquer santo.

Além da promessa, pensando em reforçar a intenção, Anacleto recorreu também às simpatias. Botou imagem do santo de cabeça pra baixo, escreveu nomes de A a Z e plantou debaixo da bananeira, bebeu água de batata cozida em panela virgem na primeira sexta-feira da lua nova...

Uma coisa não estava clara em nenhum destes rituais.

Como a tal mulher deveria aparecer? Poderia, subitamente, bater à sua porta, por exemplo? Enfim, isso nunca se soube, mas o fato é que Anacleto pouco saiu de casa durante esse tempo. Parecia não querer ajudar o trabalho do santo.

Prazo expirado, Anacleto conformou-se: sua promessa não fora atendida.

Achou melhor nem reclamar. Mais ainda, interpretou o caso como sinal dos céus para que ele esquecesse o casamento e a monogamia.

Hoje, a vida dele é assim: mora sozinho, mas tem vários amigos; trabalha pouco, mas vive bem.

As mulheres? Com elas, age como os gatos: quando precisa, procura, e depois não está nem aí.

Se é feliz? Ele mesmo não acha.

Pra ele, é difícil enxergar o óbvio: não conseguiu o que pediu ao santo, mas tem o que todos pediram a Deus.

9.6.05

CERTEZA

A abertura ao contraditório é pouco recomendável para pessoas inseguras.
Se for o caso, prefira sempre certezas inabaláveis,
mesmo que sejam mentira.

7.6.05

PAI


Pode ser que daí você nem saiba que dia é hoje.

Talvez meu choro fique só comigo. Talvez seus ouvidos não funcionem mais. Os conselhos que eu peço, grito, os lamentos, as tristezas, e a esperança de que você não deixaria nada disso acontecer... Talvez eu esteja apenas falando sozinho.

Às vezes, acho que tudo é como eu sempre desconfiei: o mocinho morre no final. E acabou. Levantem todos e vão para suas casas. Não tem final feliz. Não tem mais nada. Vão embora. Sigam as luzes coloridas nos degraus da escada; ou então caiam, se quiserem. Mas vão. No fim do corredor tem um bebedouro, ajuda a descer a pipoca.

Aí, no escuro, eu não me reconheço mais. Se olhar para o espelho, só vejo fantasma. Nada de fantasma bonzinho. Assombração brava mesmo. Eu mesmo pareço um quebra-cabeça meio desconjuntado, com aquele monte de pecinhas fragilmente arrumadas. Algumas foram colocadas no lugar errado, inclusive. Digo mais: algumas nem são do mesmo brinquedo.

Sabe o engraçado? Mesmo assim, tem uma certeza que nunca falta: a de que somos parecidos. Mas acha que isso facilita alguma coisa? Quem dera... É tão difícil só te entender agora... Tão difícil só agora imaginar sua solidão. Só agora saber na pele o tamanho daquela tristeza, que na época eu não sabia nem relevar, quanto mais compreender.

Sabe o mais engraçado? Você me levou junto pra esse lugar, esse cantinho seu, e eu acho que nem percebeu. De tanto reclamar, acabei te seguindo. Cada vez que eu não te aceitava, pensando, na minha imaturidade, que só o super homem, perfeito, poderia dar conta das minhas fraquezas, eu me aproximava mais de você. Tenho certeza que a gente ia acabar se encontrando. Pena que não deu tempo. Pena.

Talvez por isso hoje seja tão difícil confiar em alguém.

Ah, se fosse hoje... hoje eu pegava a tua mão, te abraçava, e não deixava você ir embora nunca mais. Quem sabe assim eu confiava mais nas pessoas.

Pode ser que daí você não se lembre de mais nada.

Mas aqui, nos últimos 11 anos, não teve um dia em que eu não lembrasse de você, pai.

5.6.05

IMAGENS

Não há qualquer novidade
na mensagem da embalagem.
Todas as imagens
são meramente ilustrativas.

1.6.05

MENINA (resumido a 25% pelo microsoft word 2000)

Água no baço fazia a menina se portar como uma possuída. Quando dava de ter seus ataques, lançava-se ao chão, tremia os músculos do corpo inteiro, babava, relinchava.
Um dia, chegou na cidade a ‘Bela Trupe Internacional Companhia de Circo’. Umanha ficava umas cinco léguas do Vitória, distância que sempre parecera intransponível para uma companhia de tão limitadas condições. Além de ser utilizado pelo palhaço em suas apresentações, quando, com a ajuda de um ventilador embutido, lançava para cima polvilho amarelo - uma das sensações do espetáculo! – um velho calhambeque era o único meio de locomoção da trupe. Aos berros, esquisitos àquela hora da manhã, explicava quem eram e o que estavam fazendo ali. Abaixada a poeira, a cidade chegou à conclusão: a primeira grande apresentação aconteceria naquela mesma noite, depois da missa, na praça.
A praça costumava ser usada numa única específica circunstância: a festa da padroeira. Nestas festas, a menina não ia nunca. A menina tinha duas irmãs, que fizeram a mãe botar o vestido de festa no sol, para tirar o odor da naftalina. Depois da missa, passaram em casa para deixar a menina, e voltaram à praça.
A cada movimento certo, o cão ganhava do malabarista um carinho, e aplausos calorosos da platéia.
O malabarista agradeceu a platéia e sumiu por detrás do pano verde.
O número do calhambeque foi acompanhado com atenção, e descontraiu principalmente as crianças, que até então não haviam entendido muito do que ele dissera.De repente, uma clareira se abriu no meio do povo. O mágico pediu que ela juntasse as mãos na altura do quadril, em forma de concha. Quando deu por si, notou um barulhinho tênue vindo do céu. Eram pétalas de rosa que caíam, do nada, cintilando sobre cabeças incrédulas.

30.5.05

MENINA

Água no baço fazia a menina se portar como uma possuída. Quando dava de ter seus ataques, lançava-se ao chão, tremia os músculos do corpo inteiro, babava, relinchava. Depois de dezenas de doutores, de diferentes especialidades (tendo um deles diagnosticado a referida patologia), montes de benzedeiras, das mais diversas crenças, chás e ungüentos mil, todos eles absolutamente inócuos, a família já perdera a esperança em qualquer terapêutica. No que fazia muito bem.
Um dia, chegou na cidade a ‘Bela Trupe Internacional Companhia de Circo’. Apesar de bela, a trupe era composta por apenas quatro elementos: um palhaço, um mágico, um malabarista e um cachorro amestrado; apesar de internacional, nunca saíra daquelas cercanias - revezava-se entre as mesmas sete ou oito minguadas cidadezinhas que surgiam, como que por milagre, ao longo do leito do rio Vitória, que já secara há tempos.
Naquele ano, nunca se soube bem o porquê, a ‘Bela Trupe’ decidira visitar, pela primeira vez, Umanha, a cidade em que morava a menina. Umanha ficava umas cinco léguas do Vitória, distância que sempre parecera intransponível para uma companhia de tão limitadas condições. Além de ser utilizado pelo palhaço em suas apresentações, quando, com a ajuda de um ventilador embutido, lançava para cima polvilho amarelo - uma das sensações do espetáculo! – um velho calhambeque era o único meio de locomoção da trupe. É possível que, depois de tantos anos, os quatro tenham se apegado tanto ao Fubeca (nome carinhoso do carrinho), que passaram a confiar mais nele. Quem sabe aprenderam, em alguma de suas itinerâncias, a dar valor à sabedoria que só o tempo traz. Quem sabe...
A chegada da Bela Trupe foi anunciada pelo motor do Fubeca, que lembrava o som de uma artilharia de fogos de São João, e pelas latas, guizos e outras geringonças barulhentas que no pára-choque se penduravam, agitando aquela manhã de sábado. Os cachorros de rua foram os primeiros a apressar os passos para acompanhar o comboio, seguidos dos cachorros domésticos, um pouco mais tímidos, e das crianças. Todos gritavam, riam e latiam, achando muita graça na bagunça.
O palhaço, que usava maquiagem suave, como se esconder o rosto fosse só uma obrigação do ofício, e cabelos compridos, que tornavam desnecessária a peruca, ia de pé no banco de trás. Aos olhares atônitos de quem passava, perguntava se hoje tinha palhaçada, respondendo ele mesmo: “hoje tem, sim senhor!”. Aos berros, esquisitos àquela hora da manhã, explicava quem eram e o que estavam fazendo ali. Abaixada a poeira, a cidade chegou à conclusão: a primeira grande apresentação aconteceria naquela mesma noite, depois da missa, na praça.
A praça costumava ser usada numa única específica circunstância: a festa da padroeira. Todos os anos, no segundo domingo do mês de agosto, a comunidade montava quatro barracas: uma para vender doces, outra, bebidas, outra, salgados diversos; em outra, faziam o bingo. Entre as barracas, se estendiam bandeirolas coloridas. O seu Vigêncio levava a vitrola, da qual não descuidava a noite toda, com medo que aumentassem demais o volume e acabassem danificando as caixas acústicas feitas em madeira escura. E assim tentavam se divertir. Até as dez, quando o Vigêncio alegava uma tal de “lei do barulho” e desligava a vitrola. Aí, todos voltavam para casa.
Nestas festas, a menina não ia nunca. Seus pais temiam que, retirada de sua pacata rotina, e levada para aquela grande agitação, ela tivesse um de seus ataques, aterrorizando a todos e estragando, definitivamente, o divertimento da maioria. Naquele sábado, não era pra ter sido diferente.
A menina tinha duas irmãs, que fizeram a mãe botar o vestido de festa no sol, para tirar o odor da naftalina. A mãe e o pai consentiram que elas fossem, desde que fossem junto, e desde que não voltassem tarde, caso os artistas demorassem a terminar o espetáculo.
Depois da missa, passaram em casa para deixar a menina, e voltaram à praça.
A apresentação começou com os truques de um cachorrinho inteligente e magro, chamado Arisco, que pulava corda, andava nas patas traseiras e se fingia de morto. A cada movimento certo, o cão ganhava do malabarista um carinho, e aplausos calorosos da platéia.
Terminado este número, foi a vez dele, o malabarista, demonstrar suas habilidades. Pegou umas coisas que pareciam garrafas e começou a lançá-las para cima, trocando de mãos e mantendo sempre uma no ar, para delírio dos presentes. Depois, acendeu umas toras de madeira com a ponta embebida em querosene e começou a cuspir fogo, violentamente. Cada clarão revelava na praça olhos arregalados e bocas abertas. O malabarista agradeceu a platéia e sumiu por detrás do pano verde.
Em seguida, veio o palhaço. Com a maquiagem um pouco mais carregada, e roupas divertidas, se pôs a contar causos que arrancaram gargalhadas até do seu Vigêncio, considerado por todos o mais sisudo morador de Umanha. O número do calhambeque foi acompanhado com atenção, e descontraiu principalmente as crianças, que até então não haviam entendido muito do que ele dissera.
O mágico entrava sempre por último. Assim que ele começou a retirar moedas da orelha esquerda de um moço franzino, que assistia a tudo da primeira fila, todos umanhenses olharam para o padre, como se temessem que talvez fosse caso para exorcismo. Aos poucos, porém, foram se acostumando, e até gostando.
De repente, uma clareira se abriu no meio do povo. Aparentemente, todos abriam passagem a alguém. Era a menina, de chinelo e camisola. O pai, a mãe e as irmãs demoraram instantes a entender aquilo que estava acontecendo. Também não entendendo nada, e fazendo valer a máxima segundo a qual “o show deve continuar”, o mágico continuou sua apresentação, atraindo novamente a atenção, ao menos da maioria. Para seu próximo truque, chamou ao palco de caixotes aquela menina que usava camisola. E a menina subiu.
O mágico pediu que ela juntasse as mãos na altura do quadril, em forma de concha. Sobre elas, fez pousar um lenço de seda. Dizendo palavras mágicas, que os espectadores repetiam com voz receosa, enfiou suas mãos por baixo do pano e de lá tirou uma rosa de papel marchê. Esperou aplausos entusiasmados (afinal, aquele era o último de seus truques), mas recebeu um silêncio árido e pesado, como um sepulcro. Desnorteou-se. Quando deu por si, notou um barulhinho tênue vindo do céu. Olhou para cima, temendo uma improvável chuva.
Em segundos, todos olhavam. Menos a menina.
Eram pétalas de rosa que caíam, do nada, cintilando sobre cabeças incrédulas. Num átimo, como a chuva que desaba depois da garoa, já eram milhares, milhões de pétalas, tantas que seu cheiro e seu colorido inebriaram a todos. Cada um sentia como se não houvesse mais ninguém, além de si mesmo, não apenas naquela praça, mas em todo o vasto mundo.
Ninguém nunca soube precisar quanto tempo se passou nisso. Para eles, o tempo também sumira. O que se sabe é que, em algum momento, a chuva de pétalas cessou. Todos se entreolhavam, sem querer dizer nada. Olharam para o palco, e o mágico não parecia mais um artista forasteiro; parecia umanhense como eles. Notaram a falta da menina, que sumiu para sempre.
Nunca mais, depois daquela noite, os cidadãos de Umanha comentaram o acontecido.

27.5.05

26

Sabe as pérolas que os olhos vêem? Repara bem.
São lama.

A lama lá me leva, como a lua o navio
Tururum... turum... ... turum...
Leva, lua. Olha a lua na água.
Mira a água na rua. Mira a terra na lua.
Veja o barro, a marisma
No cambaleio da vela, meu mar à míngua
Cera ou pavio? Abajur
Beirada ou língua queimada? Panela
Sussurro ou suspiro? Cagaço
Leitão ou torresmo? Cachaço
Cana ou mel? Melaço
Laranja ou Banana? Bagaço
Joelho ou mão? Regaço
Dor ou fome? Inchaço
Mágico ou tigre? Palhaço
Vovô ou vovó? Padrasto.
Céu ou inferno?
I n - c i - n e - r a - ç ã o

23.5.05

DESTINO

Dado que, em certo momento, um acontecimento
ainda é anterior ao seu acontecer,
a probabilidade não é nada senão
a medida da proximidade
entre ambos.

Acaso é um dos nomes outros de Deus.

3.5.05

MORTE

Um dia meu corpo inerte estará entre meus irmãos. E não lhes dirá mísera palavra. Sequer “não chorem por mim, que assim fico triste”. Nem os traços de meu rosto; minha última expressão nada expressará. Meus antigos segredos nela não estarão. As explicações que eu prometera dar um dia, tampouco. Calarei para sempre meus não-ditos.

Pena... Porque, ali, bem ali, terei certeza. Ironias do destino ou paradoxos da existência? Bem quando eu poderia revelar, tornar mais transparente o universo, explodindo sua verdade aos sete mares e aos quatro ventos, emudecerei, trancafiado numa casa de madeira.

Sim! Será uma casa de madeira, sem janelas e sem fechadura, a espectadora privilegiada dessa soturna letargia. E da orgia - que sempre se segue – encarregada de me tragar, para depois delatar a terra.

Quando era criança, sempre sonhei em morar numa casa de madeira, daquelas pré-fabricadas, com teto em estilo suíço. Depois, fui descobrir que aquele formato fora criado para fazer escorrer rapidamente a neve, algo que não se vê nesta porção do hemisfério sul.

27.4.05

AUTO ESTIMA

Ser bom em algumas coisas convém. Pelo menos em algumas coisas.
Um dos fatores que mais me incentivou a brigar pela vida afora, tentando ser bom em algumas coisas, foi uma baixa auto estima que considero genética. Foi a auto avaliação péssima, sempre insatisfeita com os resultados, a responsável por me fazer tentar melhorar, sempre. Mesmo quando já estava bom.

19.4.05

PRECIPÍCIO

Imagine que você, de repente, acorde de pé em cima de uma esteira rolante, flutuando, no nada, por sobre um precipício. Sem alças para segurar, sem apoio para descansar - apenas você, a esteira rolando e a altura do precipício. Por quanto tempo você resistiria? Tentaria caminhar até o fim das suas forças? Desistiria logo e deixaria-se cair?
Quanto tempo?

6.4.05

RIMA

Pediram que calasse, e que não ousasse dizer coisa qualquer.
Uma tristeza de poucos ais, uma alegria calma, um suor sem gastura. Não.
Que não fosse por dinheiro, por poder, que não fosse por mulher.
Que não gritasse por uma unha quebrada, um joelho ralado, um vermelho na urina.
Que fosse amargura, úlcera péptica, câncer terminal. Que suplicasse morfina.

Pediram que fosse ao fundo, que trouxesse arsênico entre os dentes.
Que desafiasse o bom senso, o comum, o médio, o mundo.
Que não pensasse em amigos, colegas, amantes, parentes.
Que soubesse bem onde meter o rabo, e escolhesse apenas a dor.
Porque, no final, só haveria a única, a rima: amor.

28.3.05

TEMPO

Não confio no tempo, meu vizinho, que larga dejetos no corredor. Porque sempre chega tarde, barulhento. Porque desconhece a parcimônia e a temperança, as duas virtudes cardeais.

Um dia, chegava eu de uma noite sem lua e sem final, quando, de repente, ouvi sua porta abrir. No vão do batente, havia um vácuo, um nada, um ninguém.
Como se abrira a porta?
Aproximei. Por pouco tempo, senti cheiro de nada, cheiro de ninguém. Depois, havia um bafo de cachaça, um tanto forte.
Lá dentro, nada, ninguém. Só o espelho embaçado.

21.3.05

PALHAÇO

Se não me perguntares quem sou, eu sei. Mas, se me perguntares, não faço a menor idéia.

Sou o palhaço que se aquieta na tristeza, à espera de um sentido que lhe alcance. Alimento-me de fundinhos de panela. Só não me peça pra tirar a máscara, que ainda não quero assustar ninguém.
Quando era criança, me achava feio, bobo, esquisito – um completo desafio às mais primitivas formas de afeição. Pra não morrer sem graça, fui vendo que só me restava desprezar antes. O mundo desprezível. Belas criações divinas, desgraçadas pela multidão de lixos que as assolava.
Mas o desprezo não estava na minha natureza, e tive que arranjá-lo. No mercado, meu dinheiro só comprava desprezos de segunda mão, dos mais vagabundos, que viravam pó e deixavam a gente na mão. Comprei.
Mas era mais o amor que se achegava. Amor, desobediente amor. O sentimento mais egoísta dessas paragens, ao contrário do que diziam os padres. A cada investida dele, uma lufada de desprezo barato.
Depois, não sei direito, acho que percebi que era dor a dor que deveras sentia. Que a coisa toda não era brincadeira não.
À merda com quem quiser tirar sarro da minha cara! Às favas com quem puder me machucar (desvelar a máscara, por exemplo)!
Agora parece que dei uma alienada (Agora = não a extensão temporal que se entende como presente. Agora = agora mesmo, já).
Permita que eu volte sozinho... Duas ou três frases atrás... Na coisa dos padres...
Todos deveriam estar maculados pela co-responsabilidade do pecado original. Mas não só. Eram todos sujismundos que se orgulhavam de chafurdar. Que achavam tudo normal. Assim, todos deveriam ser odiados por Deus, meu pai. Pecadores de bosta, já para o inferno! – diria meu Deus, enquanto eu ficaria a sós com as doze virgens do destino, por não cooptar com aquele regime. A mim restaria a pureza, o bem, mantos, capas santuárias, feitios de linho.
Em resumo: se era pra me destacar da cartela de figurinhas autocolantes que constitui o mundo do ‘a gente’, que fosse para me colar no álbum, e não para jogar fora, ou pr’alguma criança brincar de grudar na estante até eu perder a cola.
Mas, prossigamos.
Antevi logo possibilidades outras. Carmelo era um monge impoluto, sério, um exemplo de homem. Estudara trapézio com as bruxas. Quando se virou de ponta cabeça, caíram de sua túnica trezentas e catorze fotos de crianças nuas. Carmelo viu, então, que era o mais abjeto dos seres, e suicidou-se.
Era disso que estava falando. Carmelo matou-se? Não! Foi a ira divina que sobre ele exerceu sua maldição, as bruxas conduzindo.
Imagine o risco de amar uma pessoa dessas. Antes não era de se preferir o desprezo, o ódio mesmo? E se ele quisesse passar o resto da vida ao meu lado, e eu deixasse? E se não percebesse o volume das fotos escondidas sob o tecido?
Assim, fui pintando a cara. A tinta virando borracha, aderindo. Como a máscara do Fofão.
Fui palhaço por excesso de opção.

17.3.05

FRAGILIDADES

Não bula com minhas fragilidades; já é tão difícil expô-las.
Preocupe-se com elas. Não martirizo, se você prometer cuidar.
Seria diferente, se pudesse escolher.
Não que a escolha seja vedada - nunca é. Mas escolhi não escolher, diria Sartre.
Porque, dentre as coisas que, mudo, podia transformar, estas me causaram mais receio. Medo de que quebrassem na minha mão, e eu não tivesse crédito suficiente, na conta corrente do meu ser mais próprio, pra indenizar o estrago.
Não pedi desculpa, não se meta a oferecer. Quem desculpa é Deus.

16.3.05

CHUVA

Vai chover, e ouvi dizer que o mundo vai acabar.
Pelo barulho, não duvidei.
Noé teve boa intenção, mas dessa parece que o mundo não passa.

14.3.05

DESTINO

Eis a chance que esperavas.
Quiseste. Tentaste.
Eis.
Agarra-te a ela.
Ou cala-te.
Dissolva o destino. Ria-se dele.
Embriaga-te de desespero.
Navega no torpor.
E, com sorte, chorarás para sempre.

12.3.05

ESCRITOR


As putas estão muito mais próximas da literatura que as mães de família.

Mentira?

No bojo do mundo, os valores e artefatos civilizados e civilizatórios faz um esforçozinho para permanecer presa fácil da racionalidade, programável e controlável. Enquanto isso, a literatura resta aninhada numa aura de lascívia mesmo, de secreções fétidas e pruridos mal coçados. Sem dúvida, preferível que se misture com as tetas meio murchas de uma quenga velha a imiscuir-se no seio de um lar, já constituído às custas de tanta renúncia.

Quando o sujeito condena-se à literatura (por vocação, gosto ou má índole), despoja-se de parte importante de sua solidez social, sua porção condicionada, aquela que, a despeito de todo muco alojado por sobre a pele, se apresenta superficialmente dócil, amigável, apta a negociar o conflito (sempre a partir da renúncia, não hesite). Aceita, em outras palavras, a pecha criminosa de haver cagado em cima de um altar, ou pior, de ter profanado o esconderijo do graal sagrado. Ou, pior ainda, de ter comido a maçã que guardava o conhecimento do bem e do mal, expondo a humanidade inteira à danação terrena. Isso mesmo, quem não se entrega torna-se co-responsável pelo pecado universal.

Voltando às putas. Sabe quando as putas gritam, fazendo escândalo, mesmo que desnecessário? É porque se sentem aviltadas com a condenação – a pecha. Indignam-se. O escândalo é uma represália. Ninguém quer ser feito de bobo. A puta guarda no fundo da bolsa uma navalha, e não é por questão de segurança. De que adianta uma ridícula navalha no fundo da bolsa se há armas de fogo e homens muito mais fortes que ela? A lâmina cortante é simbólica, quase uma metáfora da castração. Ao menos na imaginação, ela pode fazer jorrar o sangue, cravando fundo na carne de cada cliente babão que visita seu canal vaginal. Ferida que deixe cicatriz, pra que não esqueçam.

O escritor faz igualzinho.

A quanta curra não se submete, para depois lançar porra mesclada de sangue – o corte da navalha - nos olhos e no cabelo do público leitor...

Como a puta, que já não se surpreende com o número de pais de família bem estabelecidos que vêm com ela se deitar. Mas nem por isso larga a navalha, nem por isso está menos atenta ao momento exato do contra-golpe, da vingança. No metier dela, a contravenção só é mais óbvia. Mas, talvez por isso mesmo, o trabalho asséptico do escritor é de uma sacanagem mais completa (o mais perverso é sempre o mais quietinho).

Por exemplo, o escritor deseja dizer que o sujeito entrou na sala e se deparou com alguém que esperava por ele. Uma maneira de escrever isso é: “o sujeito entrou na sala e se deparou com alguém que esperava por ele”.

Mas não é assim que o escritor fará. Não mesmo, rapaz. Nenhum deles quer que você imagine por si mesmo a situação. Desse jeito você poderia entrever as entrelinhas, aspecto escondido talvez até para o próprio escritor. Não mesmo, rapaz. Esteja certo, ele descreverá a cena de maneira tão plena que você se sentirá lá.

Quem te disse que literatura liberta? Escraviza. Não há espaço para o possível-ainda-que-não-provável, para o sonho, para a ilusão, não há brecha entre o eixo da roda e a rolimã. A descrição é tão insofismável e inegociável quanto o próprio real. Descriação. Porém – lá vai a diferença! -, enquanto o real é um subproduto do destino (ou um destino dos deuses), a descrição é artificialmente construída. Por um filho da puta que julga saber ler e escrever. Apartada da possibilidade de escolha, toda relação tem características ditatoriais. Se não é relação entre escravo e rei, na melhor das hipóteses tem o consentimento canalha da suserano-vassalo.

Enfim, “o sujeito entrou na sala e se deparou com alguém que esperava por ele”, após um movimentar-se lancinante dos dedos da mão, premendo as ingênuas teclas do omisso teclado, se tornará: “o sujeito estava diante da porta. Receoso, permanecia prostrado diante daquele imenso e maciço obstáculo de madeira de lei, que naquele instante lhe pareceu infinitamente mais resistente que a própria parede ao lado. Após alguns segundos, que lhe pareceram longos como horas, ainda hesitante, girou lentamente a maçaneta de aço inoxidável, incrustada em pedraria africana. O rangido da porta ao abrir-se intensificou o suspense que pairava no ar. Descerrada a porta, o sujeito ousou um passo incerto para dentro da sala. Nesse momento, foi capaz de ver, surpreso, que alguém já esperava por ele”.

Mentira?

Livro que tem 50 páginas não vale nada? Ah, sem problema, o escritor conta a mesma história em 457. A mesmíssima história, meu caro. Como no exemplo acima. A diferença está na sacanagem, na vontade de fazer com que o leitor perceba que é hipócrita; que, ao mesmo tempo em que se imagina domesticado, se entrega a pecados e vícios da moral. Por que? Porque ninguém lê pra mostrar que é bom menino; lê esperando putaria, depravação, gotas de ópio que possa fruir sentado na solidão da privada.

Por isso, quando a escola começa a requisitar, as crianças negam a leitura de forma tão renitente: de fato, não têm ainda necessidade de ler coisa alguma. Nelas ainda não surgiram as inadequações que mais tarde as obrigarão à opressiva renúncia. Freud estava errado. E se reclamar, manda falar comigo.

O escritor sabe disso muito bem, e usa todo seu conhecimento para vingar-se do status de puta que os cidadãos de bem lhe conferem. Ele lhes tira a liberdade - a navalha no fundo da bolsa da puta velha de guerra.

Porque também sabe que, se não for isso, será um jornal, uma palavra cruzada, uma bula de remédio, um catálogo de lingerie.

8.3.05

Chama a mãe que o pai tá louco.

14.2.05

NÃO

Escrever pra dizer sim não é preciso.
O sim está sempre implícito, como já dizia Newton na lei da inércia.
Calando já se consente.
Não tem serventia nenhuma gastar os miolos matutando concordâncias.
Eu escrevo é pra dizer não.