28.3.05

TEMPO

Não confio no tempo, meu vizinho, que larga dejetos no corredor. Porque sempre chega tarde, barulhento. Porque desconhece a parcimônia e a temperança, as duas virtudes cardeais.

Um dia, chegava eu de uma noite sem lua e sem final, quando, de repente, ouvi sua porta abrir. No vão do batente, havia um vácuo, um nada, um ninguém.
Como se abrira a porta?
Aproximei. Por pouco tempo, senti cheiro de nada, cheiro de ninguém. Depois, havia um bafo de cachaça, um tanto forte.
Lá dentro, nada, ninguém. Só o espelho embaçado.

21.3.05

PALHAÇO

Se não me perguntares quem sou, eu sei. Mas, se me perguntares, não faço a menor idéia.

Sou o palhaço que se aquieta na tristeza, à espera de um sentido que lhe alcance. Alimento-me de fundinhos de panela. Só não me peça pra tirar a máscara, que ainda não quero assustar ninguém.
Quando era criança, me achava feio, bobo, esquisito – um completo desafio às mais primitivas formas de afeição. Pra não morrer sem graça, fui vendo que só me restava desprezar antes. O mundo desprezível. Belas criações divinas, desgraçadas pela multidão de lixos que as assolava.
Mas o desprezo não estava na minha natureza, e tive que arranjá-lo. No mercado, meu dinheiro só comprava desprezos de segunda mão, dos mais vagabundos, que viravam pó e deixavam a gente na mão. Comprei.
Mas era mais o amor que se achegava. Amor, desobediente amor. O sentimento mais egoísta dessas paragens, ao contrário do que diziam os padres. A cada investida dele, uma lufada de desprezo barato.
Depois, não sei direito, acho que percebi que era dor a dor que deveras sentia. Que a coisa toda não era brincadeira não.
À merda com quem quiser tirar sarro da minha cara! Às favas com quem puder me machucar (desvelar a máscara, por exemplo)!
Agora parece que dei uma alienada (Agora = não a extensão temporal que se entende como presente. Agora = agora mesmo, já).
Permita que eu volte sozinho... Duas ou três frases atrás... Na coisa dos padres...
Todos deveriam estar maculados pela co-responsabilidade do pecado original. Mas não só. Eram todos sujismundos que se orgulhavam de chafurdar. Que achavam tudo normal. Assim, todos deveriam ser odiados por Deus, meu pai. Pecadores de bosta, já para o inferno! – diria meu Deus, enquanto eu ficaria a sós com as doze virgens do destino, por não cooptar com aquele regime. A mim restaria a pureza, o bem, mantos, capas santuárias, feitios de linho.
Em resumo: se era pra me destacar da cartela de figurinhas autocolantes que constitui o mundo do ‘a gente’, que fosse para me colar no álbum, e não para jogar fora, ou pr’alguma criança brincar de grudar na estante até eu perder a cola.
Mas, prossigamos.
Antevi logo possibilidades outras. Carmelo era um monge impoluto, sério, um exemplo de homem. Estudara trapézio com as bruxas. Quando se virou de ponta cabeça, caíram de sua túnica trezentas e catorze fotos de crianças nuas. Carmelo viu, então, que era o mais abjeto dos seres, e suicidou-se.
Era disso que estava falando. Carmelo matou-se? Não! Foi a ira divina que sobre ele exerceu sua maldição, as bruxas conduzindo.
Imagine o risco de amar uma pessoa dessas. Antes não era de se preferir o desprezo, o ódio mesmo? E se ele quisesse passar o resto da vida ao meu lado, e eu deixasse? E se não percebesse o volume das fotos escondidas sob o tecido?
Assim, fui pintando a cara. A tinta virando borracha, aderindo. Como a máscara do Fofão.
Fui palhaço por excesso de opção.

17.3.05

FRAGILIDADES

Não bula com minhas fragilidades; já é tão difícil expô-las.
Preocupe-se com elas. Não martirizo, se você prometer cuidar.
Seria diferente, se pudesse escolher.
Não que a escolha seja vedada - nunca é. Mas escolhi não escolher, diria Sartre.
Porque, dentre as coisas que, mudo, podia transformar, estas me causaram mais receio. Medo de que quebrassem na minha mão, e eu não tivesse crédito suficiente, na conta corrente do meu ser mais próprio, pra indenizar o estrago.
Não pedi desculpa, não se meta a oferecer. Quem desculpa é Deus.

16.3.05

CHUVA

Vai chover, e ouvi dizer que o mundo vai acabar.
Pelo barulho, não duvidei.
Noé teve boa intenção, mas dessa parece que o mundo não passa.

14.3.05

DESTINO

Eis a chance que esperavas.
Quiseste. Tentaste.
Eis.
Agarra-te a ela.
Ou cala-te.
Dissolva o destino. Ria-se dele.
Embriaga-te de desespero.
Navega no torpor.
E, com sorte, chorarás para sempre.

12.3.05

ESCRITOR


As putas estão muito mais próximas da literatura que as mães de família.

Mentira?

No bojo do mundo, os valores e artefatos civilizados e civilizatórios faz um esforçozinho para permanecer presa fácil da racionalidade, programável e controlável. Enquanto isso, a literatura resta aninhada numa aura de lascívia mesmo, de secreções fétidas e pruridos mal coçados. Sem dúvida, preferível que se misture com as tetas meio murchas de uma quenga velha a imiscuir-se no seio de um lar, já constituído às custas de tanta renúncia.

Quando o sujeito condena-se à literatura (por vocação, gosto ou má índole), despoja-se de parte importante de sua solidez social, sua porção condicionada, aquela que, a despeito de todo muco alojado por sobre a pele, se apresenta superficialmente dócil, amigável, apta a negociar o conflito (sempre a partir da renúncia, não hesite). Aceita, em outras palavras, a pecha criminosa de haver cagado em cima de um altar, ou pior, de ter profanado o esconderijo do graal sagrado. Ou, pior ainda, de ter comido a maçã que guardava o conhecimento do bem e do mal, expondo a humanidade inteira à danação terrena. Isso mesmo, quem não se entrega torna-se co-responsável pelo pecado universal.

Voltando às putas. Sabe quando as putas gritam, fazendo escândalo, mesmo que desnecessário? É porque se sentem aviltadas com a condenação – a pecha. Indignam-se. O escândalo é uma represália. Ninguém quer ser feito de bobo. A puta guarda no fundo da bolsa uma navalha, e não é por questão de segurança. De que adianta uma ridícula navalha no fundo da bolsa se há armas de fogo e homens muito mais fortes que ela? A lâmina cortante é simbólica, quase uma metáfora da castração. Ao menos na imaginação, ela pode fazer jorrar o sangue, cravando fundo na carne de cada cliente babão que visita seu canal vaginal. Ferida que deixe cicatriz, pra que não esqueçam.

O escritor faz igualzinho.

A quanta curra não se submete, para depois lançar porra mesclada de sangue – o corte da navalha - nos olhos e no cabelo do público leitor...

Como a puta, que já não se surpreende com o número de pais de família bem estabelecidos que vêm com ela se deitar. Mas nem por isso larga a navalha, nem por isso está menos atenta ao momento exato do contra-golpe, da vingança. No metier dela, a contravenção só é mais óbvia. Mas, talvez por isso mesmo, o trabalho asséptico do escritor é de uma sacanagem mais completa (o mais perverso é sempre o mais quietinho).

Por exemplo, o escritor deseja dizer que o sujeito entrou na sala e se deparou com alguém que esperava por ele. Uma maneira de escrever isso é: “o sujeito entrou na sala e se deparou com alguém que esperava por ele”.

Mas não é assim que o escritor fará. Não mesmo, rapaz. Nenhum deles quer que você imagine por si mesmo a situação. Desse jeito você poderia entrever as entrelinhas, aspecto escondido talvez até para o próprio escritor. Não mesmo, rapaz. Esteja certo, ele descreverá a cena de maneira tão plena que você se sentirá lá.

Quem te disse que literatura liberta? Escraviza. Não há espaço para o possível-ainda-que-não-provável, para o sonho, para a ilusão, não há brecha entre o eixo da roda e a rolimã. A descrição é tão insofismável e inegociável quanto o próprio real. Descriação. Porém – lá vai a diferença! -, enquanto o real é um subproduto do destino (ou um destino dos deuses), a descrição é artificialmente construída. Por um filho da puta que julga saber ler e escrever. Apartada da possibilidade de escolha, toda relação tem características ditatoriais. Se não é relação entre escravo e rei, na melhor das hipóteses tem o consentimento canalha da suserano-vassalo.

Enfim, “o sujeito entrou na sala e se deparou com alguém que esperava por ele”, após um movimentar-se lancinante dos dedos da mão, premendo as ingênuas teclas do omisso teclado, se tornará: “o sujeito estava diante da porta. Receoso, permanecia prostrado diante daquele imenso e maciço obstáculo de madeira de lei, que naquele instante lhe pareceu infinitamente mais resistente que a própria parede ao lado. Após alguns segundos, que lhe pareceram longos como horas, ainda hesitante, girou lentamente a maçaneta de aço inoxidável, incrustada em pedraria africana. O rangido da porta ao abrir-se intensificou o suspense que pairava no ar. Descerrada a porta, o sujeito ousou um passo incerto para dentro da sala. Nesse momento, foi capaz de ver, surpreso, que alguém já esperava por ele”.

Mentira?

Livro que tem 50 páginas não vale nada? Ah, sem problema, o escritor conta a mesma história em 457. A mesmíssima história, meu caro. Como no exemplo acima. A diferença está na sacanagem, na vontade de fazer com que o leitor perceba que é hipócrita; que, ao mesmo tempo em que se imagina domesticado, se entrega a pecados e vícios da moral. Por que? Porque ninguém lê pra mostrar que é bom menino; lê esperando putaria, depravação, gotas de ópio que possa fruir sentado na solidão da privada.

Por isso, quando a escola começa a requisitar, as crianças negam a leitura de forma tão renitente: de fato, não têm ainda necessidade de ler coisa alguma. Nelas ainda não surgiram as inadequações que mais tarde as obrigarão à opressiva renúncia. Freud estava errado. E se reclamar, manda falar comigo.

O escritor sabe disso muito bem, e usa todo seu conhecimento para vingar-se do status de puta que os cidadãos de bem lhe conferem. Ele lhes tira a liberdade - a navalha no fundo da bolsa da puta velha de guerra.

Porque também sabe que, se não for isso, será um jornal, uma palavra cruzada, uma bula de remédio, um catálogo de lingerie.

8.3.05

Chama a mãe que o pai tá louco.