19.4.06

PROMESSAS

Sei que fui a lugares que minha mãe sequer sonharia, mas é difícil distinguir entre oportunidades de crescimento e portas para as modalidades mais lentas de suicídio. Às vezes me sinto longe, às vezes penso que não saí do lugar. Às vezes me sento no sofá com palavras-cruzadas e prevejo uma brisa mais leve, plena de um ócio criativo. Às vezes me sinto cansado com tanto trabalho à frente.
E temo passar mais da metade da vida preso entre o infarto e a cadeira do bar. E o tempo que restar prometendo um dia fazer tudo diferente, dar valor àquilo pelo que tenho sido cobrado, mas que já nem me faz falta.
A eternidade salve nossas promessas.

17.4.06

ENIGMA BÓLIDO

Chega uma hora em que se presta atenção à procura de sinais. Sábado uma velha e desconhecida senhora se aproximou de mim.
Uma velha desconhecida tentando articular palavras cujo significado ela mesma devia ignorar, se dirigindo a alguém que ela também nunca vira, como regida por um maestro invisível. Como se o vento soprasse nos ouvidos dela uma mensagem para mim. Eu entenderia com naturalidade que a Fortuna usasse a velha com tal propósito. Minha teimosia cotidiana seria motivo para incompreensão tamanha que obrigara o destino, no desespero, a buscar esta forma de comunicação, mais direta impossível. O importante é que, a partir dali, eu não teria mais dúvida.
Os olhos da velha senhora pareciam brilhar por trás das lentes dos óculos. Imaginei seu próprio espanto diante da indescritível sensação que a acometia. O que pensaria ela a meu respeito depois de agir como mero instrumento a meu serviço? Ó minha velha, a culpa não seria minha... Ela entenderia?
Havia dois com a velha. Um casal, e ela certamente era mãe da mulher. Seriam responsáveis por dizer, ainda muito tempo depois, quando a velha já tivesse definitivamente se calado, do que teriam presenciado naquele momento comigo.
A velha agora parecia dispensar o apoio da filha, que até ali a segurava pelo braço (provavelmente estava tomada de uma força descomunal). Um passo a mais e teria mesmo caído no meu colo. Talvez não fosse necessário. Que dissesse o que fora designada a me dizer, e pudesse seguir em paz seu caminho. Não desejava a ela nenhum mal.
Seus lábios se abriam como animais que acordam da mais longa hibernação, tremelicando espreguiçamentos esparsos. Novamente, eu era capaz de entender a magnitude da situação. Esperava apenas que o som saísse por entre os beiços avermelhados. Seria o som da sua própria voz? Desejei que sim, pra que o espanto deles não fosse ainda maior. Insuportável, quiçá? Temi por eles uma fração de segundo.
A batuta do maestro invisível executava o último ato, um corte horizontal rasante no ar. Já era possível escutar algo, e notei de soslaio que a filha aguçava ouvidos incrédulos. Seria a velha muda? Estaria meu destino a tirá-la de um silêncio que durava 20 anos, desde a perda do amado marido, desaparecido durante a ditadura militar?
O começo era ininteligível, talvez não traduzido desde sua origem intergaláctica (ou etérea). Tivemos paciência. Mas, quando notei, a mensagem havia terminado. Continuaria a velha seu percurso, dar-me-ia às costas, deixaria por ali toda incompreensão? Ofeguei um pedido de desculpas por minha notável leviandade, pedindo que repetisse.
A velha esboçava um sorriso. Perdoava-me? Voltava a si? Ou o remetente da mensagem, fosse quem fosse, ria-se sarcasticamente pelas beiças dela? Temi, pela primeira vez, que o conteúdo da mensagem não me beneficiasse em nada. Que fosse minha designação a uma missão fatal, o anúncio da minha via crucis.
A velha repetia a curta revelação, mas meu corpo tencionava um leve tremor. Se leve, corajoso, pois àquela altura nada mais podia ser previsto. Sairíamos dali com vida?
Finalmente, pude entender: “Primeiro as damas”.
Primeiro as damas? Um código cifrado cuja significação mais profunda somente seu destinatário final, ou seja, eu, poderia compreender? O tempo corria como um bólido.
Paralisado como estava, os pés presos ao chão, percebi a velha atravessando vagarosamente o espaço entre meu corpo e a parede do corredor, e um resquício do sorriso enigmático preservado em seu rosto. Agora era possível ver: a filha também ostentava o mesmo sorriso, e voltava a segurar o braço da mãe.
Depois que passaram por mim, dei um passo à frente, voltando à posição de onde me afastara ao avistar a anciã. Tivesse eu desrespeitado os ditames da educação, antecipado minha passagem pelo estreito corredor em detrimento das duas senhoras, e nada disso talvez aconteceria. Teria o destino oportunidade de me pregar aquela peça? “Primeiro as damas”. “Primeiro as damas”. Sabia que não esqueceria tão cedo. Recorreria a antigos livros de sabedoria, aos ensinamentos dos mais respeitáveis decifradores, mas já não tinha esperança de compreender. Se o destino quisesse, teria sido mais claro.
Usar a anciã de saúde precária apenas para me pregar uma peça?! Aquilo já era muito desrespeito.
Esperaria uma outra oportunidade, e então iria lhe dizer algumas verdades.

3.4.06

ESCRITA

a escrita é o burilar de uma horda inquieta,
genérica, nômade
peças dispersas de um maquinário incerto
espelho de um estar no mundo
extático ou discreto, às pressas

Insaciáveis enquanto primevas
são mal dotadas de pensamentos
cujas dores, rancores e outros ais
vêm dar direto no cais de porto de cada sina
humana, como lobos em matilha a presa a rodear
e co'a violência do mar que dá na pedra,
como a uma sombria amante
no leito onde turbilhonam-se os seixos rolados
e o escuro ousa o brilhante
a letra se despe da noite mais negra
e oferece aos incautos seus beijos de amor