17.4.06

ENIGMA BÓLIDO

Chega uma hora em que se presta atenção à procura de sinais. Sábado uma velha e desconhecida senhora se aproximou de mim.
Uma velha desconhecida tentando articular palavras cujo significado ela mesma devia ignorar, se dirigindo a alguém que ela também nunca vira, como regida por um maestro invisível. Como se o vento soprasse nos ouvidos dela uma mensagem para mim. Eu entenderia com naturalidade que a Fortuna usasse a velha com tal propósito. Minha teimosia cotidiana seria motivo para incompreensão tamanha que obrigara o destino, no desespero, a buscar esta forma de comunicação, mais direta impossível. O importante é que, a partir dali, eu não teria mais dúvida.
Os olhos da velha senhora pareciam brilhar por trás das lentes dos óculos. Imaginei seu próprio espanto diante da indescritível sensação que a acometia. O que pensaria ela a meu respeito depois de agir como mero instrumento a meu serviço? Ó minha velha, a culpa não seria minha... Ela entenderia?
Havia dois com a velha. Um casal, e ela certamente era mãe da mulher. Seriam responsáveis por dizer, ainda muito tempo depois, quando a velha já tivesse definitivamente se calado, do que teriam presenciado naquele momento comigo.
A velha agora parecia dispensar o apoio da filha, que até ali a segurava pelo braço (provavelmente estava tomada de uma força descomunal). Um passo a mais e teria mesmo caído no meu colo. Talvez não fosse necessário. Que dissesse o que fora designada a me dizer, e pudesse seguir em paz seu caminho. Não desejava a ela nenhum mal.
Seus lábios se abriam como animais que acordam da mais longa hibernação, tremelicando espreguiçamentos esparsos. Novamente, eu era capaz de entender a magnitude da situação. Esperava apenas que o som saísse por entre os beiços avermelhados. Seria o som da sua própria voz? Desejei que sim, pra que o espanto deles não fosse ainda maior. Insuportável, quiçá? Temi por eles uma fração de segundo.
A batuta do maestro invisível executava o último ato, um corte horizontal rasante no ar. Já era possível escutar algo, e notei de soslaio que a filha aguçava ouvidos incrédulos. Seria a velha muda? Estaria meu destino a tirá-la de um silêncio que durava 20 anos, desde a perda do amado marido, desaparecido durante a ditadura militar?
O começo era ininteligível, talvez não traduzido desde sua origem intergaláctica (ou etérea). Tivemos paciência. Mas, quando notei, a mensagem havia terminado. Continuaria a velha seu percurso, dar-me-ia às costas, deixaria por ali toda incompreensão? Ofeguei um pedido de desculpas por minha notável leviandade, pedindo que repetisse.
A velha esboçava um sorriso. Perdoava-me? Voltava a si? Ou o remetente da mensagem, fosse quem fosse, ria-se sarcasticamente pelas beiças dela? Temi, pela primeira vez, que o conteúdo da mensagem não me beneficiasse em nada. Que fosse minha designação a uma missão fatal, o anúncio da minha via crucis.
A velha repetia a curta revelação, mas meu corpo tencionava um leve tremor. Se leve, corajoso, pois àquela altura nada mais podia ser previsto. Sairíamos dali com vida?
Finalmente, pude entender: “Primeiro as damas”.
Primeiro as damas? Um código cifrado cuja significação mais profunda somente seu destinatário final, ou seja, eu, poderia compreender? O tempo corria como um bólido.
Paralisado como estava, os pés presos ao chão, percebi a velha atravessando vagarosamente o espaço entre meu corpo e a parede do corredor, e um resquício do sorriso enigmático preservado em seu rosto. Agora era possível ver: a filha também ostentava o mesmo sorriso, e voltava a segurar o braço da mãe.
Depois que passaram por mim, dei um passo à frente, voltando à posição de onde me afastara ao avistar a anciã. Tivesse eu desrespeitado os ditames da educação, antecipado minha passagem pelo estreito corredor em detrimento das duas senhoras, e nada disso talvez aconteceria. Teria o destino oportunidade de me pregar aquela peça? “Primeiro as damas”. “Primeiro as damas”. Sabia que não esqueceria tão cedo. Recorreria a antigos livros de sabedoria, aos ensinamentos dos mais respeitáveis decifradores, mas já não tinha esperança de compreender. Se o destino quisesse, teria sido mais claro.
Usar a anciã de saúde precária apenas para me pregar uma peça?! Aquilo já era muito desrespeito.
Esperaria uma outra oportunidade, e então iria lhe dizer algumas verdades.

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