20.10.06

FEBRE

A febre aumentava um pouco mais
o calor das declarações.
E nada do remédio fazer efeito
não antes das três da manhã.

16.10.06

FESTA

No recheio do bolo havia um jogo de montar.
O menino quase perdia os dentes, não fosse o nojo do pêssego em calda. A sacolinha de presentes, que tradicional e inocuamente finalizava os festejos afins, fora antecipada como acontecimento, já que só na surpresa residia o devir.
Os pais eram pensadores amadores pansexualistas. O tema da festa era "ascensão e queda da modernidade burguesa". Nas paredes, figuras em isopor adornavam. Mas ao invés de super-heróis, bustos de Benjamim e Beauvoir.
Bebiam-se sucos, sumos espremidos dos frutos da horta que ladeava o quintal. Os copos eram leves e frágeis, de material reciclável. Vez por outra abandonavam, desfalecidos, as mãos dos convivas, derramando-se ao chão. Mas a biosfera agradecia. Decompô-los-ia em poucas semanas.
Manjavam-se quitutes mil, sem carne, sem sangue, sempre muito verdes, vermelhos e amarelos. Os cocôs sairiam um marrom bem denso – sinal de funcionamento harmonioso das tripas e das pregas.
Sentia-se no ar o cheiro da consciência de um novo futuro cósmico. Ou talvez fosse incenso indiano. Nos olhares mais iniciados, até fulgia o alvorecer de uma nova humanidade.
Não se viam ungidos, mas sensatos.
Para uns, festa era uma pausa no tempo. Para outros, era a lentidão solene do tempo.

Eram chatos, sim. Andróides de outro jeito. Aos olhos alheios. Mas, afinal, quem não somos?