29.7.04

QUADRADO

Assim, solto, é tudo muito vazio. Os lugares abarrotados e barulhentos fedem a mofo de casa abandonada, dado o silêncio que cravam na pele e no dorso.
Assim, solto, todo desejo é meio ignorante. Passam coisas interessantes, aqui e ali, e meu olhar acompanha de besta, um tanto ávido, um tanto displicente, um tanto ingênuo, um tanto rancoroso. Mas não cria compromisso.
Queria recortar um quadrado no mundo pra viver dentro. Uma casinha móvel e de contornos flexíveis, ainda que bem definidos, que eu levasse comigo pra todo lugar. Grande pra que nele coubessem todos os amores, sonhos, fantasias, pessoas e mundos, fosse pequeno o bastante pra caber no coração.

19.7.04

INTERDITO
 
Ricardo amava Maria, que amava Pessoa, que amava.
Segurou o amor por respeito à outra, por quem não movia uma caixa de fósforos vazia. Deixou ir embora a oportunidade que tinha, nada pequena. Da vida, talvez. Foi dormir tranqüilo, moralizado, mas sozinho. Nem era sacanagem o que ele queria, era carinho. E um sorriso meigo. É bobo mesmo, o que fazer? Mas tão bonito. Da bobeira da vida mesmo, sem ainda ajuizar pelas cabeças que pensam. Vai pensar nela mais três dias, acho. Bastante. Depois menos, só na hora de acordar e na de dormir.
Se soubesse, tinha sido mais claro, ido até mais o fundo - disse.
Mas quem falou que não sabia?! Já conhece essa história de trás para frente, de cor e sapateado. Acompanha todo processo bem de perto: reconhece como começa, percebe que está acontecendo, e confirma quando termina.
Ela tinge o cabelo, vai saber o que mais...
Gente, não acreditem nele.
Não enrola, se sentiu travado por nada. Pensou demais e, de novo, vai chorar na cama que é lugar quente. E de novo amanhã, viu? (sem querer me meter a oráculo de boteco)
Não falei??
 
Um dia ele aprende, gente, deixa comigo.

14.7.04

DEBULHO

Sabe o dia que não terminou?
Saí na rua agora, só pra confirmar; eu tinha razão, no povo não há ninguém. Nada especial, nem diferente, nem bizarro. Nada extraordinário. O vento, o barulho do vento, o frio do vento no rosto. O cotidiano, espetáculo que não emociona mais, reduzido a uma meia dúzia de esquetes, que o público assiste por obrigação.
Ninguém conforta. Ninguém conhece a força que acompanha o fraco.
Meu braço estica todo e não toca nada. Muitos já se entrelaçaram. As pontas dos dedos roçam alguma coisa fria – a última que morreu – até que tudo se desfaz e some numa fumaça densa, nevoeiro de pintura chinesa. Parece que há uma solidão final me esperando em qualquer esquina. Um fim triste e sem graça. Um, dois, três e já: o show acabou, podem ir pra casa.
Nem juntar as mãos em prece, nem para o céu serve. Quem machuca não tem a intenção, e isso é ainda muito pior.
Com licença, senhor, mas agora falo eu. Porque quem molha o travesseiro não é a sua senhora, aquela vagabunda filha de uma puta, sou eu mesmo. Euzinho de marré de si.
Então você ouve, ou morre. Mas cala a boca, pelo amor.
Satisfeito? Tô sim. Só se for com o cu da sua mãe, aquela gostosa. Diga se podia ser pior. Conformado, conformando... pra vaca de presépio só falta o sino no pescoço. E vai fazer o quê, fala pra mim?
Eu brigo, odeio um pouco, e?
Chego aqui e pronto, desabo, debulho.
Bobo é o seu caralho. Eu vi a vida de um lugar, amigo, de um lugar. Se você conhecesse... não, graças ao Deus que você não conhece, ia fazer merda. Banalizar o sagrado, já pensou?
Mas daí eu vi a vida de um lugar.
Ficou tudo assim. Ninguém nunca veio dizer, explicar; fiz que entendi o peso que se carrega nas costas.
Desculpa o palavrão. É culpa da droga que excita mais o neurônio esquerdo, o da raiva. A erva da qual se extrai o veneno debulhol, que dá nas matas de seu contorno e domínio.
Nem seria por vício, não fosse.

8.7.04

ELEFANTES

Um elefante no fundo do quintal nunca esteve lá. Arrepia até a última corcova da minha espinha. Elefante não tem expressão, parece fantasma. Não quer parecer ninguém.
Na cozinha tem verdura, ração pra coelho. Elefante vai comer na minha mão. Assim me refestelo no susto, faço uma história que dá pra entender.
Aproximando, olhando o bicho, à direita da cerca. Ela, tão pequena perto dele. Ração vai alimentá-lo, ele vai embora. Ou vou eu, não sei mais.
Outro elefante apareceu. Agora sim um susto de verdade. Não vou fazer mais nada. Quem mandou?
Vou esperar no quarto que eles venham me pegar.

6.7.04

ABERTURA

O nível dessas divagações está muito aquém da sua expectativa.
Não, você não sente nada por mim, nem me considera digno de qualquer valor, mas sei que a gente sempre espera.
Quanta frustração você tolera? Sabe ser surpreendido pelo que não quer?
O mundo acontece à sua revelia - já notou? Sua vontade é uma gotinha no oceano do mundo.
E, de repente, parece que já engatamos uma conversa.
Só eu falo? Não sei, não iria mesmo lhe ouvir. Se quiser, fale sozinho também. Dialoguemos em solidão.
Quem sabe daqui a pouco não viramos amigos e esquecemos aquela história de expectativa.

Não. Melhor não.
Não quero que você me considere por amizade. Agradeço, mas não.
Por favor, não insista!
(Desculpe a ousadia, você não ia mesmo insistir)
Então é isso. Não sou seu amigo e escrevo coisas que não cabem a sua expectativa.
Mas isso não quer dizer nada. Você pode até gostar. Duvido, mas pode.
Por que então teria chegado até aqui, lendo essa porcaria? Foi isso, gostou? De novo, duvido.
Talvez você tenha pena. Raiva. Vergonha. Medo. Indiferença. Isso também não diz nada. Você precisa é de vontade. Essa é a condição necessária e suficiente. Sine qua non.
Sim, sua vontade vale alguma coisa.
É uma gota que molha, que chega a incomodar. Estou agora em poder da sua vontade. Você pode me descartar, jogar num canto. Pode esfacelar meu corpo; bater na minha cara. Pode me querer morto. Pode me afagar até eu gozar na sua cara. Sei lá. Lembre: não somos amigos.
Faça alguma coisa. Qualquer uma. Por gentileza.

5.7.04

SAUDADE

Palavra

Silenciada em rima
Soletrada em prosa

Suor seco
Sina
Solidão

Saudade
Saudade
Saudade

Palavras

Saudades
Saudades
Saudade