14.7.04

DEBULHO

Sabe o dia que não terminou?
Saí na rua agora, só pra confirmar; eu tinha razão, no povo não há ninguém. Nada especial, nem diferente, nem bizarro. Nada extraordinário. O vento, o barulho do vento, o frio do vento no rosto. O cotidiano, espetáculo que não emociona mais, reduzido a uma meia dúzia de esquetes, que o público assiste por obrigação.
Ninguém conforta. Ninguém conhece a força que acompanha o fraco.
Meu braço estica todo e não toca nada. Muitos já se entrelaçaram. As pontas dos dedos roçam alguma coisa fria – a última que morreu – até que tudo se desfaz e some numa fumaça densa, nevoeiro de pintura chinesa. Parece que há uma solidão final me esperando em qualquer esquina. Um fim triste e sem graça. Um, dois, três e já: o show acabou, podem ir pra casa.
Nem juntar as mãos em prece, nem para o céu serve. Quem machuca não tem a intenção, e isso é ainda muito pior.
Com licença, senhor, mas agora falo eu. Porque quem molha o travesseiro não é a sua senhora, aquela vagabunda filha de uma puta, sou eu mesmo. Euzinho de marré de si.
Então você ouve, ou morre. Mas cala a boca, pelo amor.
Satisfeito? Tô sim. Só se for com o cu da sua mãe, aquela gostosa. Diga se podia ser pior. Conformado, conformando... pra vaca de presépio só falta o sino no pescoço. E vai fazer o quê, fala pra mim?
Eu brigo, odeio um pouco, e?
Chego aqui e pronto, desabo, debulho.
Bobo é o seu caralho. Eu vi a vida de um lugar, amigo, de um lugar. Se você conhecesse... não, graças ao Deus que você não conhece, ia fazer merda. Banalizar o sagrado, já pensou?
Mas daí eu vi a vida de um lugar.
Ficou tudo assim. Ninguém nunca veio dizer, explicar; fiz que entendi o peso que se carrega nas costas.
Desculpa o palavrão. É culpa da droga que excita mais o neurônio esquerdo, o da raiva. A erva da qual se extrai o veneno debulhol, que dá nas matas de seu contorno e domínio.
Nem seria por vício, não fosse.

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