31.8.04

VÍCIO

Entregue em razão e espírito, vivia tempos de Nababo. A contensão era alegre, o sentido acenava clamando. Mas como linha de costura, como sempre, frágil.
A cabeça escondia tormenta cultivada longe, trazida em potes dourados desde uma aflição anterior, já esquecida inominada, e por isso tão perigosa.
Insinuada conexão entre as áres de plantio e a atual, de colheita, a cabeça correu e parou de súbito.
Num uso habilidoso da lei da inércia, conseguiu o que queria: misturar o que dera tanto trabalho para separar. E voltou aos tempos de confusão.
Onde estava o Pai numa hora daquelas? Chamava e não ouvia. Pudesse e faria o tempo voltar. Ou registraria patente da máquina de desacontecer, idéia cobiçada há tempos. Mas era como um vício.
E vício é o mecanismo de defesa contra a ruptura no tempo provocada pelo trauma de um verdadeiro acontecer.

26.8.04

PODER

Dia de chuva, festa no inferno.
À noite vão se espalhar todos os poderes de hierarquias e assinaturas. Poderes que impondo deveres. Poderes que fazem lá pra mim. Traz um copo de água que me aleijei e não posso andar até o bebedouro. Acumulam-se humilhações que merecem, mas não ousam represália.
Eu jogo o jogo de fora, gandula das orgias do poder. Cato as bolas-fora nas raias do afeto.
Então prefiro uma e outra.
Porque o sentimento pode não decidir nada na ponta de uma caneta, mas é de uma verdade e um saber que o mais dotado intelectual se ajoelharia. E invejaria.

18.8.04

MAQUINAÇÕES

Nas mãos do poeta o mundo fluía de novo, como nos primórdios. A fala falava e criava e a escuta escutava e criava. A própria vida colocava-se em movimento – não se deslocando de A para B, mas transitando, exercitando.
Na boca do profeta o presente pedia passagem ao futuro. O futuro não reclamava. Arreganhava-se como a mais tenebrosa fêmea e cedia às palavras, que adentravam o porvir. E a ciranda do tempo rodava sua fortuna, destinando a todos como gado de corte.
A própria liberdade que se inventava era filha bastarda do controle. Sua mãe era a pretensão, mas puxara o pai em tudo.
Ia-se andando, com farpas roçando os braços laterais, algo que não chegava a incomodar. Quase igual: no meio do milharal. O balanço dava a noção do tempo, que fugia enquanto se passava.
Nem tudo eram flores, nem tudo eram flores. Havia espinhos que grunhiam com desespero e medo de entrar nos olhos saltados dos beira-morte.
A mágoa e o ressentimento eram picuinhas do demônio. Aquele santo homem, que já havia trazido o trabalho ao mundo, as cagava pela trilha. Passarinho nenhum ia querer comer sua merda, saberia voltar depois.
O demônio tinha os cabelos muito negros, mais que a noite, mais que o nada. E gel no cabelo, que parecia pintado com caneta hidrocor, tão liso, fios tão colados. E um bigode lascivo, fino e feio, de feltro barato. E dentes folgados. E pose de garçom. E cauda de maestro. E magro de ruindade. E voz aguda, rachada, insistente. E assolava os rebanhos, montes e castelos, cidades.
Naquela época, se podia largar o estar aqui - e ir longe, sem deslocamento algum.
Ouvia passas e paca, posso, e poço, queda funda original, ser si mesmo. Mau.
Porém. Nem a reentrância última oporia resistência ao uniforme do dispositivo. Era de voltar pra casa, caso uma meia do par estivesse desconforme.
Disseram que sim pra não encher mais a paciência, desistir não sendo sua índole. Fizeram tudo sem gostar, achando que gostavam. Ele gritou:

Suficiente!

Brincadeira de diabo? Ou dizer basta agora é também do cousa ruim?
Por via das dúvidas, aproveitem a fraqueza, que agora ele existe. Com quem estava a água benta? Joga.
Joga sem medo, porra.
Cof, cof. É a fumaça que sobe dele. Sei não se de enxofre. Fumaça inexistente, acho.
Mas ele conhece tão bem os fogos, vai morrer de fumaça?
Sim. Não há fumaça nos quintos.
A turba urge. Quase festa. Lá no meio, lá pelas tantas: onde demoninho esconde os potes de ouro? Ele gritou:

Voltado!

Vá tomar no cu. Por isso ele nunca morre: ganância ressuscita ele.

5.8.04

TRAÍDO

Não precisa agradecer; não faço pra agradar.
Quando a conheci, tive no sorriso um sol e uma lua cujas existências nunca ousara conceber.
Eu a levo pra passear, distrair da rotina, respirar novos ares, até esquecer um pouco da vida, enquanto seu comportamento deixa a desejar. Eu digo e mostro a ela uma vida que vale a pena. Eu ofereço um colo e um ombro, coisas muito úteis depois dos seus ataques de fúria. Você não pode imaginar como ela fica triste, desanimada. Não pode saber como fazem bem os carinhos. Eu pago um vinho, a levo para um lugar tranqüilo. A gente conversa bastante, dá boas risadas, e faz outras coisas também (das quais faço absoluta questão de lhe poupar).
Você há de concordar: ela merece muito. Se você não faz a sua parte, deve estar percebendo: tenho tentado fazer a minha.
Não pense que é fácil. Quem mais sofre sou eu.
Sou pra ela apenas um bom companheiro – um palhaço, se você preferir. A mim não resta mais que um punhado de aplausos. De resto, vivo numa solidão que você simplesmente desconhece.