30.5.05

MENINA

Água no baço fazia a menina se portar como uma possuída. Quando dava de ter seus ataques, lançava-se ao chão, tremia os músculos do corpo inteiro, babava, relinchava. Depois de dezenas de doutores, de diferentes especialidades (tendo um deles diagnosticado a referida patologia), montes de benzedeiras, das mais diversas crenças, chás e ungüentos mil, todos eles absolutamente inócuos, a família já perdera a esperança em qualquer terapêutica. No que fazia muito bem.
Um dia, chegou na cidade a ‘Bela Trupe Internacional Companhia de Circo’. Apesar de bela, a trupe era composta por apenas quatro elementos: um palhaço, um mágico, um malabarista e um cachorro amestrado; apesar de internacional, nunca saíra daquelas cercanias - revezava-se entre as mesmas sete ou oito minguadas cidadezinhas que surgiam, como que por milagre, ao longo do leito do rio Vitória, que já secara há tempos.
Naquele ano, nunca se soube bem o porquê, a ‘Bela Trupe’ decidira visitar, pela primeira vez, Umanha, a cidade em que morava a menina. Umanha ficava umas cinco léguas do Vitória, distância que sempre parecera intransponível para uma companhia de tão limitadas condições. Além de ser utilizado pelo palhaço em suas apresentações, quando, com a ajuda de um ventilador embutido, lançava para cima polvilho amarelo - uma das sensações do espetáculo! – um velho calhambeque era o único meio de locomoção da trupe. É possível que, depois de tantos anos, os quatro tenham se apegado tanto ao Fubeca (nome carinhoso do carrinho), que passaram a confiar mais nele. Quem sabe aprenderam, em alguma de suas itinerâncias, a dar valor à sabedoria que só o tempo traz. Quem sabe...
A chegada da Bela Trupe foi anunciada pelo motor do Fubeca, que lembrava o som de uma artilharia de fogos de São João, e pelas latas, guizos e outras geringonças barulhentas que no pára-choque se penduravam, agitando aquela manhã de sábado. Os cachorros de rua foram os primeiros a apressar os passos para acompanhar o comboio, seguidos dos cachorros domésticos, um pouco mais tímidos, e das crianças. Todos gritavam, riam e latiam, achando muita graça na bagunça.
O palhaço, que usava maquiagem suave, como se esconder o rosto fosse só uma obrigação do ofício, e cabelos compridos, que tornavam desnecessária a peruca, ia de pé no banco de trás. Aos olhares atônitos de quem passava, perguntava se hoje tinha palhaçada, respondendo ele mesmo: “hoje tem, sim senhor!”. Aos berros, esquisitos àquela hora da manhã, explicava quem eram e o que estavam fazendo ali. Abaixada a poeira, a cidade chegou à conclusão: a primeira grande apresentação aconteceria naquela mesma noite, depois da missa, na praça.
A praça costumava ser usada numa única específica circunstância: a festa da padroeira. Todos os anos, no segundo domingo do mês de agosto, a comunidade montava quatro barracas: uma para vender doces, outra, bebidas, outra, salgados diversos; em outra, faziam o bingo. Entre as barracas, se estendiam bandeirolas coloridas. O seu Vigêncio levava a vitrola, da qual não descuidava a noite toda, com medo que aumentassem demais o volume e acabassem danificando as caixas acústicas feitas em madeira escura. E assim tentavam se divertir. Até as dez, quando o Vigêncio alegava uma tal de “lei do barulho” e desligava a vitrola. Aí, todos voltavam para casa.
Nestas festas, a menina não ia nunca. Seus pais temiam que, retirada de sua pacata rotina, e levada para aquela grande agitação, ela tivesse um de seus ataques, aterrorizando a todos e estragando, definitivamente, o divertimento da maioria. Naquele sábado, não era pra ter sido diferente.
A menina tinha duas irmãs, que fizeram a mãe botar o vestido de festa no sol, para tirar o odor da naftalina. A mãe e o pai consentiram que elas fossem, desde que fossem junto, e desde que não voltassem tarde, caso os artistas demorassem a terminar o espetáculo.
Depois da missa, passaram em casa para deixar a menina, e voltaram à praça.
A apresentação começou com os truques de um cachorrinho inteligente e magro, chamado Arisco, que pulava corda, andava nas patas traseiras e se fingia de morto. A cada movimento certo, o cão ganhava do malabarista um carinho, e aplausos calorosos da platéia.
Terminado este número, foi a vez dele, o malabarista, demonstrar suas habilidades. Pegou umas coisas que pareciam garrafas e começou a lançá-las para cima, trocando de mãos e mantendo sempre uma no ar, para delírio dos presentes. Depois, acendeu umas toras de madeira com a ponta embebida em querosene e começou a cuspir fogo, violentamente. Cada clarão revelava na praça olhos arregalados e bocas abertas. O malabarista agradeceu a platéia e sumiu por detrás do pano verde.
Em seguida, veio o palhaço. Com a maquiagem um pouco mais carregada, e roupas divertidas, se pôs a contar causos que arrancaram gargalhadas até do seu Vigêncio, considerado por todos o mais sisudo morador de Umanha. O número do calhambeque foi acompanhado com atenção, e descontraiu principalmente as crianças, que até então não haviam entendido muito do que ele dissera.
O mágico entrava sempre por último. Assim que ele começou a retirar moedas da orelha esquerda de um moço franzino, que assistia a tudo da primeira fila, todos umanhenses olharam para o padre, como se temessem que talvez fosse caso para exorcismo. Aos poucos, porém, foram se acostumando, e até gostando.
De repente, uma clareira se abriu no meio do povo. Aparentemente, todos abriam passagem a alguém. Era a menina, de chinelo e camisola. O pai, a mãe e as irmãs demoraram instantes a entender aquilo que estava acontecendo. Também não entendendo nada, e fazendo valer a máxima segundo a qual “o show deve continuar”, o mágico continuou sua apresentação, atraindo novamente a atenção, ao menos da maioria. Para seu próximo truque, chamou ao palco de caixotes aquela menina que usava camisola. E a menina subiu.
O mágico pediu que ela juntasse as mãos na altura do quadril, em forma de concha. Sobre elas, fez pousar um lenço de seda. Dizendo palavras mágicas, que os espectadores repetiam com voz receosa, enfiou suas mãos por baixo do pano e de lá tirou uma rosa de papel marchê. Esperou aplausos entusiasmados (afinal, aquele era o último de seus truques), mas recebeu um silêncio árido e pesado, como um sepulcro. Desnorteou-se. Quando deu por si, notou um barulhinho tênue vindo do céu. Olhou para cima, temendo uma improvável chuva.
Em segundos, todos olhavam. Menos a menina.
Eram pétalas de rosa que caíam, do nada, cintilando sobre cabeças incrédulas. Num átimo, como a chuva que desaba depois da garoa, já eram milhares, milhões de pétalas, tantas que seu cheiro e seu colorido inebriaram a todos. Cada um sentia como se não houvesse mais ninguém, além de si mesmo, não apenas naquela praça, mas em todo o vasto mundo.
Ninguém nunca soube precisar quanto tempo se passou nisso. Para eles, o tempo também sumira. O que se sabe é que, em algum momento, a chuva de pétalas cessou. Todos se entreolhavam, sem querer dizer nada. Olharam para o palco, e o mágico não parecia mais um artista forasteiro; parecia umanhense como eles. Notaram a falta da menina, que sumiu para sempre.
Nunca mais, depois daquela noite, os cidadãos de Umanha comentaram o acontecido.

27.5.05

26

Sabe as pérolas que os olhos vêem? Repara bem.
São lama.

A lama lá me leva, como a lua o navio
Tururum... turum... ... turum...
Leva, lua. Olha a lua na água.
Mira a água na rua. Mira a terra na lua.
Veja o barro, a marisma
No cambaleio da vela, meu mar à míngua
Cera ou pavio? Abajur
Beirada ou língua queimada? Panela
Sussurro ou suspiro? Cagaço
Leitão ou torresmo? Cachaço
Cana ou mel? Melaço
Laranja ou Banana? Bagaço
Joelho ou mão? Regaço
Dor ou fome? Inchaço
Mágico ou tigre? Palhaço
Vovô ou vovó? Padrasto.
Céu ou inferno?
I n - c i - n e - r a - ç ã o

23.5.05

DESTINO

Dado que, em certo momento, um acontecimento
ainda é anterior ao seu acontecer,
a probabilidade não é nada senão
a medida da proximidade
entre ambos.

Acaso é um dos nomes outros de Deus.

3.5.05

MORTE

Um dia meu corpo inerte estará entre meus irmãos. E não lhes dirá mísera palavra. Sequer “não chorem por mim, que assim fico triste”. Nem os traços de meu rosto; minha última expressão nada expressará. Meus antigos segredos nela não estarão. As explicações que eu prometera dar um dia, tampouco. Calarei para sempre meus não-ditos.

Pena... Porque, ali, bem ali, terei certeza. Ironias do destino ou paradoxos da existência? Bem quando eu poderia revelar, tornar mais transparente o universo, explodindo sua verdade aos sete mares e aos quatro ventos, emudecerei, trancafiado numa casa de madeira.

Sim! Será uma casa de madeira, sem janelas e sem fechadura, a espectadora privilegiada dessa soturna letargia. E da orgia - que sempre se segue – encarregada de me tragar, para depois delatar a terra.

Quando era criança, sempre sonhei em morar numa casa de madeira, daquelas pré-fabricadas, com teto em estilo suíço. Depois, fui descobrir que aquele formato fora criado para fazer escorrer rapidamente a neve, algo que não se vê nesta porção do hemisfério sul.