21.11.06

FOI

Foi?
Não era pra ser
Será?
Como saberia?
Como saberei?

9.11.06

HISTÓRIA

A história se dá na cotidianidade, e não nas grandes ocasiões
em que seu falso toma lugar
como representação.

20.10.06

FEBRE

A febre aumentava um pouco mais
o calor das declarações.
E nada do remédio fazer efeito
não antes das três da manhã.

16.10.06

FESTA

No recheio do bolo havia um jogo de montar.
O menino quase perdia os dentes, não fosse o nojo do pêssego em calda. A sacolinha de presentes, que tradicional e inocuamente finalizava os festejos afins, fora antecipada como acontecimento, já que só na surpresa residia o devir.
Os pais eram pensadores amadores pansexualistas. O tema da festa era "ascensão e queda da modernidade burguesa". Nas paredes, figuras em isopor adornavam. Mas ao invés de super-heróis, bustos de Benjamim e Beauvoir.
Bebiam-se sucos, sumos espremidos dos frutos da horta que ladeava o quintal. Os copos eram leves e frágeis, de material reciclável. Vez por outra abandonavam, desfalecidos, as mãos dos convivas, derramando-se ao chão. Mas a biosfera agradecia. Decompô-los-ia em poucas semanas.
Manjavam-se quitutes mil, sem carne, sem sangue, sempre muito verdes, vermelhos e amarelos. Os cocôs sairiam um marrom bem denso – sinal de funcionamento harmonioso das tripas e das pregas.
Sentia-se no ar o cheiro da consciência de um novo futuro cósmico. Ou talvez fosse incenso indiano. Nos olhares mais iniciados, até fulgia o alvorecer de uma nova humanidade.
Não se viam ungidos, mas sensatos.
Para uns, festa era uma pausa no tempo. Para outros, era a lentidão solene do tempo.

Eram chatos, sim. Andróides de outro jeito. Aos olhos alheios. Mas, afinal, quem não somos?

26.9.06

CANTILENA

A tua dor era trapaceira
nos meus braços teus enganos eram meus
E o teu amor era cantilena
Como a luz de uma estrela que já morreu.

15.9.06

PAESANO

Ue, Paesano!

6.9.06

CHORA

Amigo é pra essas coisas também!
e, afinal, de que vale esse orgulho agora?
vá atrás,
e se ela recusar,
vê se chora

30.8.06

SONHO

Jesto / Cesto
jisto / cisto
jesto e
demônio

29.8.06

PEREIRA'S

Do quarto deu um salto
e foi brincar na varanda da casa da vó
morta há anos
mas onde antes havia cheiro de bolinho de chuva fresquinho
já vivia outra família
os Pereira's
que faziam as refeições à mesa
e não mais em frente à TV

Sentindo a diferença nas corcovas
preferiu o deserto
a água
a miragem

Matou os Pereira's,
um por um

28.8.06

GARGALHADA

A raiva
o constrangimento
o medo
o desconforto
o sono
o orgulho
a pouca fome
a impotência
a saudade
a dispensa
o passeio
o vôo
a ternura
A GAR-GA-LHA-DA

23.8.06

MONSTRO

Seu semblante desbotado
suas guelras
seu restante
Havia um monstro ali
Parado um monstro ali

Seus três olhos regalados
seus olhares
penetrantes
Havia um monstro ali
Parado um monstro ali

Seu odor de cão molhado
suas pernas
vacilantes
Havia um monstro ali
Parado um monstro ali

Seus suores fatigados
suas feridas
lancinantes
Havia um monstro ali
Parado um monstro ali

Seus humores invernados
suas idéias
seus rompantes
Havia um monstro ali
Parado um monstro ali

22.8.06

PAVÃO

Sempre soube quem eu era, ralhando com a mixórdia do autoconhecimento, não poderia me perder em ti. Vivera tão bem até então... Até que... não. Fugazes ficaram as botas amassa-barro do destino, aquele espírito zombeteiro, como constante já ficara anteriormente o monóculo do fim-de-linha, um caboclo de Minas sempre pronto à perfeição, mas renitente com o porvir.
A brincadeira do bicho pavão era exibicionista. O pastor jejuava três dias, às vezes quatro. Não traçava nem a mulher, que – diziam – ia dar com o açougueiro. Mas no quinto, o homem comia o bicho, sem piedade. Refestelava-se naquele inocente, crendo sua consciência banida de culpas. Adiantava? Esse era mesmo o amor: os punhos brilhantes, a carne bem temperada e cozida, no prato, depois na boca e em volta da boca. Os olhos ardentes, a fome dilacerante. O gozo, quase uma zoofilia, de dizer ao corpo: “calma, era brincadeira...”

21.8.06

CUPIDO

Eu era a seta
de um cupido tosco
e era a ferida aberta
da qual fluía um sangue que,
ao coagular-se,
vertia paz ao homem.

Eu era a assombração
e o susto
e era o coração tremente
com a vizinhança do amor
- ou da morte -
nunca se saberia.

Eu era a prisão
a grade, o fosso
e era a fuga
a eletricidade na cerca
depois no corpo
e a última saudade.

6.7.06

VACA

Nem que tossisse a vaca
nem que mugisse a paca
nem que grunhisse a senadora da república
aquela filha da puta, safada, sem vergonha.

29.5.06

TORÓ

A mata atrás do quintal da casa era densa, e a última rajada de vento noroeste acabara de derrubar o cobertor do varal. Melhor que o tirassem dali antes que o céu vazasse e as crianças arroubassem suas brejeirices na água morna daquele dezembro. A lama dificultaria a relavagem, se bem que a manta não pediria uso ao menos pelos próximos 5 ou 6 meses.
O cheiro terroso do café fresquinho também antecipava aquele toró das 3 e meia, e vovó decidiu improvisar bolinhos de chuva (até mesmo acreditando que o açúcar e a canela prevenissem resfriados).
A mãe quis argumentar que apenas haviam acabado de almoçar, e que nem faria bem.
A vó ralhou com ela. As crianças eram digestivas.
Seria o ensejo para uma epifania familiar, um deslocar-se repentino da espiral da vida para outro lugar, uma alteração daquelas imperceptíveis e que, no entanto, as crianças não esquecem jamais. Não fosse a ausência. A compreensão assomava lentamente, como ao revés da partida do pai.
Um primeiro raio luminoso rasgou em dois o firmamento, agora escuro. Não bastasse sua aparência, já temível, mandou à frente de si um brado gutural de trovão, e ambos assombraram mais como metáfora.
A vó esquecia a coberta, e demorava-se na panela dos bolinhos. A mãe agora ajudava, deitando a toalha bonita sobre a mesa e dispondo canecas, pratos e talheres. Chamava as crianças para dentro, e que deixassem a algazarra para amanhã, pois aquela era tempestade perigosa, e além do mais já esfriava.
(Esfriava também o vento ou a sensação que percorria a espinha da mãe lhe era exclusiva? Somente a vó já sabia, desde outros temporais.)
O óleo demorava a dourar as gostosuras, e a mãe impacientava-se. Somente a vó conhecia o ponto de fritura, e podia apreciar a beleza da ação do tempo sobre as bolinhas de farinha.
A vó e o tempo tinham sido amantes.

18.5.06

PROJÉTIL

O pior de tudo, depois de tanta soberba
é sentir-se um prójetil
bobo, sem voz, mandado
a sentir pena de si

11.5.06

MORTE

Ontem meus sonhos eram de morte
E por isso, e por todo o resto
Talvez seja muita sorte eu ainda estar aqui
Mas e daí? É sempre assim
o azar sabe que não presto
e que seu jugo não tem poder sobre mim...

19.4.06

PROMESSAS

Sei que fui a lugares que minha mãe sequer sonharia, mas é difícil distinguir entre oportunidades de crescimento e portas para as modalidades mais lentas de suicídio. Às vezes me sinto longe, às vezes penso que não saí do lugar. Às vezes me sento no sofá com palavras-cruzadas e prevejo uma brisa mais leve, plena de um ócio criativo. Às vezes me sinto cansado com tanto trabalho à frente.
E temo passar mais da metade da vida preso entre o infarto e a cadeira do bar. E o tempo que restar prometendo um dia fazer tudo diferente, dar valor àquilo pelo que tenho sido cobrado, mas que já nem me faz falta.
A eternidade salve nossas promessas.

17.4.06

ENIGMA BÓLIDO

Chega uma hora em que se presta atenção à procura de sinais. Sábado uma velha e desconhecida senhora se aproximou de mim.
Uma velha desconhecida tentando articular palavras cujo significado ela mesma devia ignorar, se dirigindo a alguém que ela também nunca vira, como regida por um maestro invisível. Como se o vento soprasse nos ouvidos dela uma mensagem para mim. Eu entenderia com naturalidade que a Fortuna usasse a velha com tal propósito. Minha teimosia cotidiana seria motivo para incompreensão tamanha que obrigara o destino, no desespero, a buscar esta forma de comunicação, mais direta impossível. O importante é que, a partir dali, eu não teria mais dúvida.
Os olhos da velha senhora pareciam brilhar por trás das lentes dos óculos. Imaginei seu próprio espanto diante da indescritível sensação que a acometia. O que pensaria ela a meu respeito depois de agir como mero instrumento a meu serviço? Ó minha velha, a culpa não seria minha... Ela entenderia?
Havia dois com a velha. Um casal, e ela certamente era mãe da mulher. Seriam responsáveis por dizer, ainda muito tempo depois, quando a velha já tivesse definitivamente se calado, do que teriam presenciado naquele momento comigo.
A velha agora parecia dispensar o apoio da filha, que até ali a segurava pelo braço (provavelmente estava tomada de uma força descomunal). Um passo a mais e teria mesmo caído no meu colo. Talvez não fosse necessário. Que dissesse o que fora designada a me dizer, e pudesse seguir em paz seu caminho. Não desejava a ela nenhum mal.
Seus lábios se abriam como animais que acordam da mais longa hibernação, tremelicando espreguiçamentos esparsos. Novamente, eu era capaz de entender a magnitude da situação. Esperava apenas que o som saísse por entre os beiços avermelhados. Seria o som da sua própria voz? Desejei que sim, pra que o espanto deles não fosse ainda maior. Insuportável, quiçá? Temi por eles uma fração de segundo.
A batuta do maestro invisível executava o último ato, um corte horizontal rasante no ar. Já era possível escutar algo, e notei de soslaio que a filha aguçava ouvidos incrédulos. Seria a velha muda? Estaria meu destino a tirá-la de um silêncio que durava 20 anos, desde a perda do amado marido, desaparecido durante a ditadura militar?
O começo era ininteligível, talvez não traduzido desde sua origem intergaláctica (ou etérea). Tivemos paciência. Mas, quando notei, a mensagem havia terminado. Continuaria a velha seu percurso, dar-me-ia às costas, deixaria por ali toda incompreensão? Ofeguei um pedido de desculpas por minha notável leviandade, pedindo que repetisse.
A velha esboçava um sorriso. Perdoava-me? Voltava a si? Ou o remetente da mensagem, fosse quem fosse, ria-se sarcasticamente pelas beiças dela? Temi, pela primeira vez, que o conteúdo da mensagem não me beneficiasse em nada. Que fosse minha designação a uma missão fatal, o anúncio da minha via crucis.
A velha repetia a curta revelação, mas meu corpo tencionava um leve tremor. Se leve, corajoso, pois àquela altura nada mais podia ser previsto. Sairíamos dali com vida?
Finalmente, pude entender: “Primeiro as damas”.
Primeiro as damas? Um código cifrado cuja significação mais profunda somente seu destinatário final, ou seja, eu, poderia compreender? O tempo corria como um bólido.
Paralisado como estava, os pés presos ao chão, percebi a velha atravessando vagarosamente o espaço entre meu corpo e a parede do corredor, e um resquício do sorriso enigmático preservado em seu rosto. Agora era possível ver: a filha também ostentava o mesmo sorriso, e voltava a segurar o braço da mãe.
Depois que passaram por mim, dei um passo à frente, voltando à posição de onde me afastara ao avistar a anciã. Tivesse eu desrespeitado os ditames da educação, antecipado minha passagem pelo estreito corredor em detrimento das duas senhoras, e nada disso talvez aconteceria. Teria o destino oportunidade de me pregar aquela peça? “Primeiro as damas”. “Primeiro as damas”. Sabia que não esqueceria tão cedo. Recorreria a antigos livros de sabedoria, aos ensinamentos dos mais respeitáveis decifradores, mas já não tinha esperança de compreender. Se o destino quisesse, teria sido mais claro.
Usar a anciã de saúde precária apenas para me pregar uma peça?! Aquilo já era muito desrespeito.
Esperaria uma outra oportunidade, e então iria lhe dizer algumas verdades.

3.4.06

ESCRITA

a escrita é o burilar de uma horda inquieta,
genérica, nômade
peças dispersas de um maquinário incerto
espelho de um estar no mundo
extático ou discreto, às pressas

Insaciáveis enquanto primevas
são mal dotadas de pensamentos
cujas dores, rancores e outros ais
vêm dar direto no cais de porto de cada sina
humana, como lobos em matilha a presa a rodear
e co'a violência do mar que dá na pedra,
como a uma sombria amante
no leito onde turbilhonam-se os seixos rolados
e o escuro ousa o brilhante
a letra se despe da noite mais negra
e oferece aos incautos seus beijos de amor

24.3.06

SUPERIORIDADE

A certeza da superioridade, embora ridícula
tornava as coisas muito mais fáceis.

23.3.06

DESESPERO

O desesperado nunca conta detalhes das regras
Teme que conheçam seus (os dela) limites.

13.3.06

FARDO

A vida, vou sonhando em pequenos tragos
Rasgos de alegria, bolsões de esperança
E muita luta injusta, duras penas
Vou sofrendo em vão, criança
Sereno como um campo de batalha
Engulo o mundo aos engasgos
Reconsidero as sanções, aceito as punições
Descarregando os fardos

10.3.06

TEMPO

O Destino.
As trapalhadas do Destino.
O destinar-se do Destino.
A inevitabilidade das decisões arbitrárias do Destino.
Suas transformações irremediáveis.
O porvir de seus braços largos.
Seu fazer acontecer que se confunde com o tempo.
O tempo.

E se Deus for o tempo?

9.3.06

TRAGÉDIA

Há de se ter a marca de uma tragédia na vida.
Labaredas cicatrizadas, estilhaços mal curados, projéteis alojados. Ou feridas ainda abertas, cuja dor rememore a fragilidade e a absoluta falta de sentido - no final das contas - da própria existência.

22.2.06

VERDADE

A verdade não é senhora sequer de si, pois perece ante à soberania do espaço e do tempo, implacáveis.
Na vivência cotidiana, porém, o pensar, já fascinado pela deusa veritas, reduz o espaço vivido à conveniência de "extensão mensurável", na qual os entes (e o próprio homem) estão dispostos, ou seja, o lugar em que repousam seus corpos.
O tempo, possivelmente mais estranho em sua manifestação, por trazer consigo a inevitabilidade do fim, esta mesma cotidianidade transforma em um momento "quando", cujo caráter mais complacente é a tangibilidade propiciada por sua disposição objetivante em relógios, calendários e afins.
ÁRIDO

Um caminho árido, um trabalho árduo
só sorrisos secos, sem molho
não é pra mim, é pra quem puder
Quisera um cotidiano sábio
uma propriedade macia, um joio
pra misturar o trigo de nunca saber
da missa a metade do sentido
e resplandecer de sol a ignorância
santa como a acalentada sapiência
de uma garrafa do mais velho vinho
sorvido não pela sede, mas pela ânsia
em nome da vida, não da vivência

20.2.06

ESTRANHO

Estranho esse teu ar indolente agora
Julgava que já o tivesses em vida
Como estranho essa tua barba crescida
Teu não nos saber, teu não respirar
Estranho a frieza de teu funeral
Num dia quente de um verão precoce
E o imponderável de uma frase certa
Mocinhos sempre morrem no final
Estranho teus espectadores últimos
E todas as histórias que derramam
Estranho as flores no teu colo murcho
E a ausência dos filhos que não tiveste
Cobiço um verso solto, tão redondo
que brote apenas da extrema estranheza
e não da dor.

16.1.06

REPENTINAS

Senhores, com licença, a vida é minha; e mesmo se não fosse.
Poupem seu rico dinheirinho, não sou de amabilidades.
E faço questão de não fazer questão nenhuma
de estar com quem quer que seja, nem comigo
nem com quem me queira.
Apenas quero o rosto, o corpo, o couro, o sonho, o reto

Não me venha com meninices
que o verão mais se presta a sandices
sendo esperto cê sucede
e vence - até - o sucesso
mas na briga, vale a força, não a malandragem
Seja na gafe, seja no buffet, seja no boteco
Só vou persuadir quem estiver de saco cheio
Porque opinião não tem início, nem fim
só tem meio

De me virar já fiz galhofa

10.1.06

DIABETES

Uma diabetes na alma.
Um couro que não cicatriza, que não esquece. Que não cria calos, os bolsões de esquecimento.
Um sangramento, em ferida aberta constante, como se o corpo não se defendesse mais. Como se houvesse desistido, justo agora. Ou como se não merecesse mais nada, justo agora.
A dor da solidão era menos cortante.