26.3.07

FESTA

Dizer que ela mexia as cadeiras, além de clichê e vulgar (ela não merece isso), seria largamente mentiroso.
Ela era uma superioridade indulgente, uma beleza simpática, daquelas cujo vislumbre dá um "Deus me livre" na espinha, um gelado na barriga, um tremor mais embaixo. Principalmente, lá pelas tantas, um tremor mais embaixo.
Na festa, não se espalhava como umas e outras. Dava-se aos goles, passando, ora pra cá, ora pra lá. Dançando, discreta. Sorrindo, discreta. Mexendo no cabelo, como se não o fizesse.
Não era fácil imaginar-se confessando à beldade os desejos mais profundos que sua presença era capaz de provocar. Ela parecia que não entenderia, ou que se ofenderia. Não era mulher pra essas sujeiras.
Mas a cabeça só fazia pensar que era.
ABSTRAÇÃO

Por fim, acabara a abstração.
Não por força dos abismos em que caía o imaginário em tempos como aqueles, mas pela irrepreensível conduta do fenômeno concreto.
Acabara. Como um pacote de biscoitos finos amanteigados.

Ela soubera de soslaio, não se importando muito com essas amenidades.
Passou a mão na bolsa e saiu, desfiguradamente interessante.

20.3.07

GADO

Extraviado no mato
Solto, a rodo
O pacto fora destituído
Intacto

Desconhecido caminho
Cabana? Ventre?
O espinho da flor
Entre os dentes

A guerra e o torpor
Não iludem
Ainda que mude
Da terra o sabor

Soberbo açodado
Esconde a floresta
Entorna o que resta
Vil como gado

6.3.07

MORNO

Se tem da rosa o lenho espinho, prefiro a gérbera e o cravo.
Só quero o doce e o salgado, não o azedo e a cica.
Ponho o pé na estrada, posto que não pisem nos meus calos.
Empunho a espada da justiça usando luvas de pelica.
Pretendo ser livre, mas nunca solto.
Penso em dar aos pobres, e consulto o contador.
Eu sou meio, eu sou morno.
Quero mudar o mundo sendo quem já sou.
Quero fazer contra-cultura bebendo bordeaux

Eu sou emancipatório, reacionariamente.
Eu quero meus filhos felizes, mas que sejam inteligentes.