10.11.04

CASÓRIO

De começo... o que impedia nosso encontro era a limpeza de minha mente... feita reza a te irritar. Agora... sabe... tem manhãs em que me reconheço preto no espelho – filha da puta do porteiro! – de tão encardido. Então vem... nos merecemos... de uma forma ou de outra... vai.

Parece parada de sete de setembro esse seu vai-e-vem... pobrelama?!
Não... brigado.
Então... vem ser mulher do teu homem... senta aqui... deixa esperar acontecer nada um pouco... assim... juntinho.
Deixa meu vem-e-vai.
Deixo não... me avexa. Parando agora ou vou te devolver pra sua mãe. Ó que ela te joga no lixo... mulher Fedô vem pegar... some você dentro de você mesma... filha.
Então vem pegar minha cabeça... filho de uma égua menstruada!
Então vou que vou mesmo... Aviso... você melhor não mexendo com quem não agüenta! vem... não foge... fica aí...
Cadê você... safado... imbecil... covarde... morre agora... morre agora. Morreu... mmorrrreeeeuuu! Queima no inferno... Ó alma que DEUS não quis parir e cagou!

Olha que musiquinha bonitinha... bem... lembra do tempo... vem curtir... cola o rostinho... pega o banquinho... traz um chá. Fez o bolo de fubá...? então traz pavê mesmo.
Aproveita e traz a tua trolha também.

8.11.04

CRÉDITO

Percalços, encalços e temas falsos. O consolo é um substituto menor que, na falta de outra coisa, acaba bastando à vida.

Ela tinha uma paixão que não lhe ardia nunca - pragmática. Dizia não aos peregrinos trovadores que, aprofundados de devoção e lirismo, desejavam encantar, como a uma serpente, o ventre fértil e dócil daquela mulher amada. Não, não e não. Fizera aqui e acolá esforços esparsos para aprender a deixar o coração doer até a penúltima gota de sangue (a última só na morte). Mas não. Permanecera, a despeito de mal sucedimentos que no peito de outra trariam desejos suicidas, incólume, impávida. Vinícius de Moraes que fosse se foder. Até que lhe provassem o contrário, o romantismo (nas artes ou no senso comum) fora criado como mero pretexto pra que os homens enfiassem o falo na vagina de mais e mais frágeis mulheres, idiotas encantadas/excitadas pela filosofia de botequim embutida naquele tipo de discurso meloso.
Comigo não, violão! - pensava.
E nessa idéia persistia. Para ela, que lera todas as feministas do século XX, todo homem era um Dom Quixote cego, manco e desacompanhado dos conselhos sábios de Sancho Pança, a atacar as mulheres que via pela frente, como a moinhos de vento, apenas em nome de outra - sua idealizada Dulcinéia - que nunca poderia ter, já que trepar com a mamãe é pecado. Defendia-se das investidas ridículas e canhestras do mundo dos homens com essa teoria simples, frágil como asa de borboleta.

Somente os atos repentinos e as paisagens rupestres têm o poder de desentranhar o sentido de nostalgias tão definitivas. Desta vez, seria um ato repentino.

Bebia um cappuccino morno, apanhado às pressas na loja de conveniência, enquanto esperava que lhe enchessem o tanque do carro de gasolina.
Não existe o menor motivo pra que uma lojinha desse tamanho tenha ar condicionado, a não ser o fato de ter que esconder o cheiro de solvente que vem das bombas. Ou seja, o ar condicionado ajuda a fazer você achar que está num lugar bastante apropriado para comer e beber, quando na verdade, em termos de insalubridade, você está num posto avançado do inferno.
O pão de queijo esperaria uma outra oportunidade, o estômago permaneceria roncando.
Aliás, terminaria a bebida no carro, em movimento, longe daqueles vapores cancerígenos que já sentia lhe arranharem a garganta. Mas não contava que na saída do gélido estabelecimento, bem na porta mesmo, fosse encontrar um filho da puta que esbarraria no copo de isopor, derrubando cappuccino na camisa bege novinha (que, por descuido - ou sono - ainda mantinha uma etiqueta da loja com o preço).

"A senhora me desculpe!" - ele disse, enquanto ela ainda media o tamanho do estrago.
"Ele me chamou de sehora?! Quantos anos pareço ter?! Setenta?!" - ela apenas pensou.
"O senhor não enxerga?!" - emendou em tom ríspido.
"A senhora realmente me perdoe, não a vi saindo, estava distraído" - disse ele com sinceridade.
"Olha como ficou isso! Vou ter que volter pra casa e trocar de blusa! Meu chefe vai me matar... E se essa mancha enorme não sair?! Minha blusa novinha..."

Todos os presentes já acompanhavam atentos a contenda entre o rapaz visivelmente constrangido e a mulher aparentemente histérica.

"Permita que a acompanhe até sua casa. Também estou indo trabalhar, mas pelo menos assim compartilho seu atraso. Aproveito e levo a blusa para a lavanderia."

Ela nunca admitiria, mas ficara atônita. Preparada como estava para briga (corporal, se preciso fosse), não esperava gentileza. Como alguém que, de repente, se vê num barco à deriva, ela permitiu que ele a seguisse.
Na porta do apartamento, um momento de indecisão fez com que um calafrio percorresse a espinha daquela mulher: enquanto entrava pelo portão do edifício, percebeu que ele já saíra do carro e estava logo atrás dela. Certamente não permitiria que ele subisse até o apartamento; no entanto, estava tão surpresa com a naturalidade com que ele fizera menção de entrar junto que demorou dois segundos até dizer: "O senhor me espere aqui fora, por favor".
Já no quarto, olhando para dentro do armário de portas abertas, tentando escolher algo que combinasse com a calça que usava, receou pela primeira vez. Entregaria a blusa para que ele levasse à lavanderia? Não conhecia aquele homem. Sequer sabia seu nome.
Desceu com a blusa dentro de um saco plástico, decidida a dizer que não havia sido nada, que não precisava se incomodar, e que ela mesma daria um jeito naquela mancha.

"Agradeço por ter me acompanhado até aqui, mas não precisa se incomodar. Eu mesma dou um jeito nisso aqui." - apontou para o conteúdo do saco plástico.
"Senhora, eu faço questão. Não seria justo, a distração foi minha." - e esticou o braço na direção dela.

Ela acabou lhe entregando a blusa.

"Meu nome é Silvio, e o seu?"
"Regina"
"Regina, pode me dar seu telefone? Eu aviso quando a blusa estiver pronta."

Deu o celular.

Passaram-se dois dias. O telefone tocou numa hora um tanto imprópria, em que ela se livrava de uma diarréia brava, provocada por um pão de queijo esquisito que comera de manhã.
Não identificando o número que aparecia no visor do aparelho, resolveu atender, imaginando que pudesse ser assunto urgente.

"Alô..."
"Alô, aqui é o Sílvio, pode falar?
"Sílvio?"
"Fiquei de levar sua blusa pra lavar, lembra?"
"Ah, sim... Diga."
"Está tudo bem? A senhora está com uma voz estranha..."
"Quantas vezes você falou comigo por telefone pra saber se minha voz está estranha...? Não me chame de senhora, por favor."
"Tudo bem. Sua blusa está pronta. A mancha saiu todinha! Quando posso levar?"
"Quando quiser. Posso te ligar daqui a pouco?" - ela sentiu uma cólica que anunciava uma rajada violenta de cocô mole.
"Claro, então a gente..." - não conseguiu completar a frase, ela desligara.

Cinco minutos depois, ela retornava a ligação. Combinaram que ele passaria de noite pra deixar a blusa.
Desta vez, ela achou que seria falta de educação não convidar o rapaz para subir. Apesar de desastrado, Silvio havia se mostrado bastante solícito. Ao bem da verdade, Regina refletiu melhor e começou a se sentir culpada pela forma como tratara Silvio no fatídico dia da mancha. Ele devia estar muito chateado, decepcionado, pensando nela como uma mulher sem classe, barraqueira. Quando percebeu que a diarréia dera uma trégua, correu até o supermercado para comprar os ingredientes de seu famoso spaghetti à putanesca, que, acompanhado do cabernet sauvignon chileno de boa safra, certamente serviria à formalização do pedido de desculpas, mostrando que ela se tratava sim de uma moça polida e bem educada.

Não parece seguro deixá-los falar agora. Ainda não.

Ele chegou quase no horário combinado, vindo direto do serviço, cheio de vontade de entregar a blusa e ir logo para casa descansar. Ela havia tomado banho e vestia uma roupa que há tempos pensava não lhe servir mais. Um leve toque de Pure Poison atrás das orelhas criava um rastro que a seguia por toda a casa. O spaghetti estava quase pronto.
O interfone tocou displicente, mas ela conseguiu ouvi-lo apressado. Correu até ele, tirou o fone do gancho desajeitadamente e o deixou cair no dedão do pé esquerdo. Ainda sem tempo para a dor (que a acompanharia o resto da noite), retomou o aparelho nas mãos e disse alô. O porteiro avisou que o "seu Silvio" estava chamando. Ela pediu que o seu Silvio subisse.

"Olha, Silvio, eu preciso me desceulpar com você pelo meu..."
"Que é isso... Não precisa se desculpar por nada, eu é que me desculpo pelo contratempo daquele dia. Aqui está a sua blusa. Bem, acho que é isso, até mais."
"Não... é... não aceita jantar comigo pra que eu me desculpe da forma como tratei você naquele dia?"
"Não entendo. Já disse que você não tem que se desculpar de nada. Se tivesse, eu diria."
"Como não?! Eu fui mal educada com você. Entre, eu preparo rapidamente alguma coisa pra gente. Também acabei de chegar" - a última parte do que ela falou é, como sabemos, mentira.
"Bem, se você insiste... mas não vou me demorar, ok?" - ele estranhou.

Regina pediu que ele ficasse à vontade e foi colocar uma música. Podia jurar que deixara o CD do Kenny G em cima do criado mudo, mas não encontrou. Acabou escolhendo Marvin Gaye.
Silvio apoiou as duas mãos no assento do sofá e impulsionou o quadril para trás, endireitando a coluna. O suor se acumulou em sua testa, prestes a formar uma gota, e ele passou a mão direita pra enxugar.

"Enquanto esperamos o jantar, que tal uma taça de vinho?" - disse Regina, enquanto ainda caminhava no corredor que levava à sala, com "Let's get it on" logo atrás.
"Receio estar dando trabalho, Regina, não precisa se incomodar..."
"Posso entender isso como um sim...?" - ela já tinha o Cabernet numa das mãos, e um abridor na outra. "Você faria a delicadeza?" - esticou o conjunto até ele.

Conversavam. Regina começava a se dar conta de como estava fascinada com aquele momento. A temperatura do vinho, o cheiro de azeite de oliva e alcaparras, vindo da cozinha, a leveza do Marvin, tudo conduzia à perfeição. Mas nada bastaria se não fosse pela presença dele - Silvio. Desejaria que o tempo parasse ali, não tivesse já insinuadas em sua imaginação outras cenas para o futuro. Estava completamente "afim" dele.
O spaghetti ficou ótimo - o melhor de todos os tempos, ela mesma achou. Não teve coragem de acender as velas, e o jantar foi iluminado por lâmpadas fluorescentes mesmo.
Nada romântico? Muito pelo contrário, a situação era tal que todo e qualquer detalhe, mesmo que aparentemente desfavorável ao clima que ela pretendia criar, somava-se aos demais na composição da melhor noite de toda a sua vida. Uma noite de quarta-feira - quem diria...

No entanto, antes que ela revelasse o que havia reservado para a sobremesa (uma torta de sorvete, que custara os olhos da cara), Silvio se levantou. Agradeceu a gentileza, desculpou-se por qualquer coisa, pegou o paletó, e deu um passo em direção à porta.
Ela não podia acreditar. O que fizera de errado, o que falara?!
Perguntou. Ele disse que não foi nada, só que precisava ir embora pra casa. Estava tarde e precisava descansar.
Ela insistiu e re-insistiu, argumentou até a sobremesa, mas Silvio parecia irredutível.
Depois do susto inicial, ela conseguiu se refazer, imaginando que aquilo também fazia parte do ritual. Pensava ela: "o que é muito fácil não tem valor... precisamos dessa despedida para valorizarmos ainda mais este encontro! agora entendi! ele é mais sedutor do que me parecia..."
Fez uma cara de séria e deixou que ele fosse, se rindo toda por dentro - despedindo-se de mentirinha; como se contracenasse com ele uma farsa, a cujo sentido o espectador só teria acesso no final da peça, quando ambos retornariam, trinfais, de trás da cortina, mãos dadas a agradecer aplausos entusiasmados.

Já dentro do carro, enquanto afivelava o cinto de segurança, Silvio não conteve uma gostosa gargalhada. "O que foi isso?!?!" - gritava para si mesmo. "Pelo amor de Deus... se eu soubesse..."

Na quinta-feira, Regina acordou pensando em esperar que ele ligasse. Na hora do almoço, porém, já mudara de idéia, e discava o número dele. Caixa Postal.
Mais tarde tentou de novo. Ele atendeu e disse que estava ocupado, perguntando se poderia ligar para ela depois. Claro que sim, desde que não a pusesse morta com um ataque de ansiedade. Não ligou.
Nos dias seguintes, Regina tentou mais duas ou três vezes. Todas em vão. Não sabia onde ele morava, nem onde trabalhava, nem mesmo tinha outro número de telefone em que pudesse encontrá-lo. Mas também - já contemporizava - ele poderia ligar. Mesmo se perdesse o telefone, sabia onde ela morava.

Nunca mais se falaram. Com relação ao acontecido, Regina se alternava entre sentimentos de rejeição, teorias malucas e esperanças ingênuas. No fundo, sabia que não agradara.
Mas, tempos depois, percebeu que era disso que precisava: uma queda, uma paulada no lombo. Podia continuar infeliz, mas ficara um pouco mais sabida.

3.11.04

CONDIÇÕES

Condições
condições
onde são
condicionais

condições
vondições
maldições
balmições
malções
baomlções

30.10.04

ZUMBI

Às vezes pensam que os carros bateram tão forte que eu morri. E que agora é só a réstia andante, carregada feito mortalha, que o corpo carrega adiante. Full of dreams, full of misery.
Tudo porque há algo que se lança fora, e que não faz falta, faz pouco caso. O vômito de um zumbi golfado de discurso torto, bem hipócrita. Idéias ainda de vida, que não pode a morte digerir. Um além-túmulo silencioso e decrépito, percorrido por uma espinha formolada que procurava o que fazer.
O morto-vivo perguntava a todos o que era, a quem servia, mas não lhe ouviam. Apenas davam de ombros a uma sensação esquisita que lhes percorria o abdômen, um frio enjoado, quando da proximidade dele.
Não se suporta o aparecimento velado de um monstro desses, uma aberração, contradição da ordem mundana e da bondade divina. Só por dinheiro se daria um cisco de consolação a esta pobre e penada alma. Mas não havia.
Tentou um latrocínio, se ofereceu pra matar por encomenda, diminuiu a intenção do crime, puxou carteiras dos bolsos. Mas nada deu muito certo. Gastava tudo consertando o que havia estragado durante a maquinação. Perna esfolada, braço quebrado, olho furado, bala perdida.
Um emprego não poderia mesmo pleitear, seu currículo era danado de feio. Mas achou que podia ganhar prestígio, o dinheiro mais usado no inferno.
Começou a vomitar de novo os discursos que tinha, de cima de um caixote amadeirado, esperando a multidão se acotovelar.
Ninguém veio. Ou melhor, quase ninguém (teve o sacana que ofereceu o megafone).
Afinal, viam ou não viam que ele estava ali? Ele estava ou não estava ali?
A que estranho estado intermediário da vida e da morte aquela criatura referia?
Quando não há pai, não há mãe, não há Deus e não há auto, o que é salvação?

14.10.04

CONTO

Já haviam se visto algumas vezes.
Ela tinha a esperança, um brilho vago no olhar, um orgulho da própria paciência, que reinava déspota sobre a ânsia do encontro definitivo, encontro com o amor dos poetas e dos íntimos do Absoluto. Ele tinha a esperança, mas um cansaço nobre, mãos que quase ousavam largar as rosas vermelhas que a vida lhe dera para que entregasse àquela que lhe fora destinada.
Ela era alegria, perdão, ternura. Ele era maciez, firmeza.
A vida tem caminhos, escolhas, momentos em que decisões banais, arroz com feijão, destinam todo um futuro dessa ou daquela maneira.
Naquela noite, quis o Destino que se sentassem um ao lado do outro. Sem motivo, sem razão, mas com um desejo que ainda se mostrava implícito. O mesmo lugar de sempre, as mesmas pessoas de sempre. De diferente, apenas esse presente do futuro, que ali se abria a novas possibilidades, predispondo-os: uma taquicardia no peito de cada um. Que soubessem, eram saudáveis. Então – novamente – motivo aparente havia nenhum, exceto o fato, ainda completamente obscuro, de terem sentado um ao lado do outro.
Quando foram ver, estavam tateando: um olhar, um sorriso, um comentário despretensioso. Tudo bem de leve. E nisso passaram horas, até que ele pensou em ir embora.
Não deu pra perceber, mas, na despedida, ela apertou a mão dele de um jeito diferente, um jeito assim de “quero-apertar-a-sua-mão-mas-não-sei-explicar-o-porquê”.
Ela ficou.
O Destino já estava decidido a desistir, ir dar em outra freguesia, quando, dez minutos depois, ela se levantou. E foi embora também.
Reencontraram-se mais à frente, na mesma rua, onde ele terminava de dar uma carona. Ele achou muita coincidência ela passar por ali. Só ela sabia que já era a segunda volta que dava no quarteirão, observando e questionando se devia parar. Ansioso, o Destino até emprestou um fôlego para a coragem: “Oi!”
Ela ia tomar café da manhã àquela hora?
Bom, quem era ele pra questionar... O convite era esse, pronto.
Ele terminou a carona e foi. Pouco depois, mas achou que podia ter demorado. Sem perceber, começou a rezar pra que ela ainda estivesse na cafeteria. Que o pedido dela viesse errado, e o garçom tivesse que mandar fazer de novo. Que ela não gostasse de café muito quente, e tivesse que esperar esfriar. Que ela encontrasse uma amiga que não via há tempos, e tivesse uma vontade enorme de conversar.
Ela ainda estava sim.
Nem café, nem amiga distante. O pedido era chocolate quente e pão de queijo, e veio certo. Mas ela comia devagar, algo que ele não previra.
Ele pensou em tomar café, mas também pediu chocolate. Quis parecer parecido, insinuar afinidade, mas ainda não acreditava nem um pouco no que poderia acontecer.
Melindrado, o Destino considerou novamente a possibilidade de deixá-los à própria sorte, o que faria da chance deles uma seqüência de seis números aguardando o sorteio da mega sena. Depois de esbravejar um pouco, com a piedade que só têm os que estão acostumados a acompanhar amores e desamores pela eternidade afora, resolveu ficar, mas que fosse a última desfeita.
Chovia, e ele sugeriu uma despedida simples. Tchau, tchau, e que corressem até os carros.
Não se ela pudesse evitar. Segurou o braço dele e pediu que a acompanhasse. Chegou no carro, abriu a porta, entrou, fuçou a bolsa e lhe estendeu um cartão de visitas. Ele tomava chuva do lado de fora, mas não ousou pensar na piora da garganta, que já arranhava há dois dias. Segurou o cartão e, contemplativo como um beneditino, ouviu: “O que você vai fazer no sábado?” Não sabia, ainda era madrugada de sexta-feira.
“Não sei”.
Ela explicou que haveria uma festa. Ele topava?
Claro que sim. Bobo ele também não era.
O Destino foi descansar junto com eles, um pouco na casa de cada um. Inspirou-lhes sonhos lindos, dos quais eles nunca se lembrariam, mas que disporiam um humor, um primeiro afeto sem o qual as grandes coisas nunca acontecem.

* * * * * * *

No dia seguinte, falaram-se ao telefone umas três vezes.
Ainda sondavam. A festa no sábado fez da sexta-feira uma espera ansiosa, principalmente para ele. Um casamento em que não conheceria ninguém, a não ser aquela que o convidara.
“A gente não vai se ver?” – ela perguntou no último dos telefonemas. Iriam se ver sim.
Foram jantar.
O carro parou na porta do restaurante. Saíram.
“O manobrista deve ter achado que somos um casal” – ele apenas pensou, pouco antes de sentir que ela pegara na sua mão.
De mãos dadas, subitamente orgulhosos, entraram pra comer.
O primeiro beijo não demoraria a acontecer – ambos sabiam. E isso tornava a vivência ainda mais interessante. Suas mãos unidas acolhiam um tempo levíssimo, sublime e lúdico, que lembrava adolescência.
O Destino lamentou que não lhe agradecessem, que estivessem tomando por natural um encaminhamento de eventos que lhe dera tanto trabalho arranjar.
Porque o Destino sofre da rabugice do tempo. Não entende o dom do seu ofício, de ajudar os homens a contar as suas próprias histórias, com finais que variam da infinita felicidade ao triste e definitivo adeus.
Não percebe sua falta de solidez, sua não-existência. O Destino é apenas um horizonte de possibilidades que se organiza em torno das coisas que devem acontecer. Seu aparecer não o revela. Apenas os homens – e as coisas do mundo dos homens – são revelados pelo aparecer do Destino.

* * * * * * *

Sábado.
Ele, que não conhecia nem os noivos, chegou na igreja cedo. Ela, que era madrinha, dez minutos atrasada.
Homens têm que se esforçar muito para alcançar alguns pontos de inteligência. Mulheres são sábias quando querem. Foi mais ou menos o que ele pensou ao se dar conta da emoção que lhe invadiu. Seria tudo ali por acaso? O modo como tudo acontecera subitamente lhe pareceu fenomenal. E agora assistiam juntos a um casamento... Ele, na platéia; ela, já no altar.
Pela primeira vez, ele lembrou-se, com reverência, do Destino.
Acabada a cerimônia, a festa.
Foram no carro dele.
Já usavam as mãos dadas desde o dia anterior, ali não seria diferente. Algumas pessoas olhavam e comentavam: quem era aquele que estava com ela?
Ela apresentava. Ele era um amigo.
Festas são sempre muito bonitas. Todos arrumados, relaxados, a comida, a bebida, a música.
Estavam um tanto constrangidos com a presença da família dela na mesa. Conversaram, dançaram um pouco.
Nada de excepcional acontecia aos olhos ingênuos dos outros, que ignoravam o mundo de sonhos e fantasias que explodia dentro dele e dela. Um mundo sem passado, criado na hora, a partir do nada, como só fazem os atos divinos. No fundo do salão, o Destino, que vestia gala, ergueu o copo e brindou no ar, rindo de canto de boca.
Ele, que desde o início da história se mantinha mais quieto, e até descrente (talvez escaldado), teve vontade de dizer algo, mas achou que era cedo. E contou isso a ela: que tinha vontade de dizer algo, mas que achava cedo.
Como já era de se esperar, ela pediu que dissesse.
Ele achou de fazer diferente. “Vem cá, que eu quero dizer uma coisa no seu ouvido”. Ela foi.
E ele cantou: “Se você quer ser minha namorada / ai que linda namorada você poderia ser / se quiser ser somente minha / exatamente essa coisinha / essa coisa toda minha / que ninguém mais pode ter”.
Ela queria.

1.10.04

CONDICIONAIS

Condicionais
condicionais
em ordem são
condicionais

a vida é uma droga
o mundo é uma bosta
quem não gosta, odeia
quem chora, não mama
quem mama, não bebe
quem bebe só cai se não sabe levantar.

9.9.04

MOTEL

Tem tempo pra fazer amor?
Tem não, senhor. Em um período não se ama, só se trepa. É pra quem quer, razão profunda não tem mesmo nenhuma.
Motel é igualzinho banheiro, isso sim.

31.8.04

VÍCIO

Entregue em razão e espírito, vivia tempos de Nababo. A contensão era alegre, o sentido acenava clamando. Mas como linha de costura, como sempre, frágil.
A cabeça escondia tormenta cultivada longe, trazida em potes dourados desde uma aflição anterior, já esquecida inominada, e por isso tão perigosa.
Insinuada conexão entre as áres de plantio e a atual, de colheita, a cabeça correu e parou de súbito.
Num uso habilidoso da lei da inércia, conseguiu o que queria: misturar o que dera tanto trabalho para separar. E voltou aos tempos de confusão.
Onde estava o Pai numa hora daquelas? Chamava e não ouvia. Pudesse e faria o tempo voltar. Ou registraria patente da máquina de desacontecer, idéia cobiçada há tempos. Mas era como um vício.
E vício é o mecanismo de defesa contra a ruptura no tempo provocada pelo trauma de um verdadeiro acontecer.

26.8.04

PODER

Dia de chuva, festa no inferno.
À noite vão se espalhar todos os poderes de hierarquias e assinaturas. Poderes que impondo deveres. Poderes que fazem lá pra mim. Traz um copo de água que me aleijei e não posso andar até o bebedouro. Acumulam-se humilhações que merecem, mas não ousam represália.
Eu jogo o jogo de fora, gandula das orgias do poder. Cato as bolas-fora nas raias do afeto.
Então prefiro uma e outra.
Porque o sentimento pode não decidir nada na ponta de uma caneta, mas é de uma verdade e um saber que o mais dotado intelectual se ajoelharia. E invejaria.

18.8.04

MAQUINAÇÕES

Nas mãos do poeta o mundo fluía de novo, como nos primórdios. A fala falava e criava e a escuta escutava e criava. A própria vida colocava-se em movimento – não se deslocando de A para B, mas transitando, exercitando.
Na boca do profeta o presente pedia passagem ao futuro. O futuro não reclamava. Arreganhava-se como a mais tenebrosa fêmea e cedia às palavras, que adentravam o porvir. E a ciranda do tempo rodava sua fortuna, destinando a todos como gado de corte.
A própria liberdade que se inventava era filha bastarda do controle. Sua mãe era a pretensão, mas puxara o pai em tudo.
Ia-se andando, com farpas roçando os braços laterais, algo que não chegava a incomodar. Quase igual: no meio do milharal. O balanço dava a noção do tempo, que fugia enquanto se passava.
Nem tudo eram flores, nem tudo eram flores. Havia espinhos que grunhiam com desespero e medo de entrar nos olhos saltados dos beira-morte.
A mágoa e o ressentimento eram picuinhas do demônio. Aquele santo homem, que já havia trazido o trabalho ao mundo, as cagava pela trilha. Passarinho nenhum ia querer comer sua merda, saberia voltar depois.
O demônio tinha os cabelos muito negros, mais que a noite, mais que o nada. E gel no cabelo, que parecia pintado com caneta hidrocor, tão liso, fios tão colados. E um bigode lascivo, fino e feio, de feltro barato. E dentes folgados. E pose de garçom. E cauda de maestro. E magro de ruindade. E voz aguda, rachada, insistente. E assolava os rebanhos, montes e castelos, cidades.
Naquela época, se podia largar o estar aqui - e ir longe, sem deslocamento algum.
Ouvia passas e paca, posso, e poço, queda funda original, ser si mesmo. Mau.
Porém. Nem a reentrância última oporia resistência ao uniforme do dispositivo. Era de voltar pra casa, caso uma meia do par estivesse desconforme.
Disseram que sim pra não encher mais a paciência, desistir não sendo sua índole. Fizeram tudo sem gostar, achando que gostavam. Ele gritou:

Suficiente!

Brincadeira de diabo? Ou dizer basta agora é também do cousa ruim?
Por via das dúvidas, aproveitem a fraqueza, que agora ele existe. Com quem estava a água benta? Joga.
Joga sem medo, porra.
Cof, cof. É a fumaça que sobe dele. Sei não se de enxofre. Fumaça inexistente, acho.
Mas ele conhece tão bem os fogos, vai morrer de fumaça?
Sim. Não há fumaça nos quintos.
A turba urge. Quase festa. Lá no meio, lá pelas tantas: onde demoninho esconde os potes de ouro? Ele gritou:

Voltado!

Vá tomar no cu. Por isso ele nunca morre: ganância ressuscita ele.

5.8.04

TRAÍDO

Não precisa agradecer; não faço pra agradar.
Quando a conheci, tive no sorriso um sol e uma lua cujas existências nunca ousara conceber.
Eu a levo pra passear, distrair da rotina, respirar novos ares, até esquecer um pouco da vida, enquanto seu comportamento deixa a desejar. Eu digo e mostro a ela uma vida que vale a pena. Eu ofereço um colo e um ombro, coisas muito úteis depois dos seus ataques de fúria. Você não pode imaginar como ela fica triste, desanimada. Não pode saber como fazem bem os carinhos. Eu pago um vinho, a levo para um lugar tranqüilo. A gente conversa bastante, dá boas risadas, e faz outras coisas também (das quais faço absoluta questão de lhe poupar).
Você há de concordar: ela merece muito. Se você não faz a sua parte, deve estar percebendo: tenho tentado fazer a minha.
Não pense que é fácil. Quem mais sofre sou eu.
Sou pra ela apenas um bom companheiro – um palhaço, se você preferir. A mim não resta mais que um punhado de aplausos. De resto, vivo numa solidão que você simplesmente desconhece.

29.7.04

QUADRADO

Assim, solto, é tudo muito vazio. Os lugares abarrotados e barulhentos fedem a mofo de casa abandonada, dado o silêncio que cravam na pele e no dorso.
Assim, solto, todo desejo é meio ignorante. Passam coisas interessantes, aqui e ali, e meu olhar acompanha de besta, um tanto ávido, um tanto displicente, um tanto ingênuo, um tanto rancoroso. Mas não cria compromisso.
Queria recortar um quadrado no mundo pra viver dentro. Uma casinha móvel e de contornos flexíveis, ainda que bem definidos, que eu levasse comigo pra todo lugar. Grande pra que nele coubessem todos os amores, sonhos, fantasias, pessoas e mundos, fosse pequeno o bastante pra caber no coração.

19.7.04

INTERDITO
 
Ricardo amava Maria, que amava Pessoa, que amava.
Segurou o amor por respeito à outra, por quem não movia uma caixa de fósforos vazia. Deixou ir embora a oportunidade que tinha, nada pequena. Da vida, talvez. Foi dormir tranqüilo, moralizado, mas sozinho. Nem era sacanagem o que ele queria, era carinho. E um sorriso meigo. É bobo mesmo, o que fazer? Mas tão bonito. Da bobeira da vida mesmo, sem ainda ajuizar pelas cabeças que pensam. Vai pensar nela mais três dias, acho. Bastante. Depois menos, só na hora de acordar e na de dormir.
Se soubesse, tinha sido mais claro, ido até mais o fundo - disse.
Mas quem falou que não sabia?! Já conhece essa história de trás para frente, de cor e sapateado. Acompanha todo processo bem de perto: reconhece como começa, percebe que está acontecendo, e confirma quando termina.
Ela tinge o cabelo, vai saber o que mais...
Gente, não acreditem nele.
Não enrola, se sentiu travado por nada. Pensou demais e, de novo, vai chorar na cama que é lugar quente. E de novo amanhã, viu? (sem querer me meter a oráculo de boteco)
Não falei??
 
Um dia ele aprende, gente, deixa comigo.

14.7.04

DEBULHO

Sabe o dia que não terminou?
Saí na rua agora, só pra confirmar; eu tinha razão, no povo não há ninguém. Nada especial, nem diferente, nem bizarro. Nada extraordinário. O vento, o barulho do vento, o frio do vento no rosto. O cotidiano, espetáculo que não emociona mais, reduzido a uma meia dúzia de esquetes, que o público assiste por obrigação.
Ninguém conforta. Ninguém conhece a força que acompanha o fraco.
Meu braço estica todo e não toca nada. Muitos já se entrelaçaram. As pontas dos dedos roçam alguma coisa fria – a última que morreu – até que tudo se desfaz e some numa fumaça densa, nevoeiro de pintura chinesa. Parece que há uma solidão final me esperando em qualquer esquina. Um fim triste e sem graça. Um, dois, três e já: o show acabou, podem ir pra casa.
Nem juntar as mãos em prece, nem para o céu serve. Quem machuca não tem a intenção, e isso é ainda muito pior.
Com licença, senhor, mas agora falo eu. Porque quem molha o travesseiro não é a sua senhora, aquela vagabunda filha de uma puta, sou eu mesmo. Euzinho de marré de si.
Então você ouve, ou morre. Mas cala a boca, pelo amor.
Satisfeito? Tô sim. Só se for com o cu da sua mãe, aquela gostosa. Diga se podia ser pior. Conformado, conformando... pra vaca de presépio só falta o sino no pescoço. E vai fazer o quê, fala pra mim?
Eu brigo, odeio um pouco, e?
Chego aqui e pronto, desabo, debulho.
Bobo é o seu caralho. Eu vi a vida de um lugar, amigo, de um lugar. Se você conhecesse... não, graças ao Deus que você não conhece, ia fazer merda. Banalizar o sagrado, já pensou?
Mas daí eu vi a vida de um lugar.
Ficou tudo assim. Ninguém nunca veio dizer, explicar; fiz que entendi o peso que se carrega nas costas.
Desculpa o palavrão. É culpa da droga que excita mais o neurônio esquerdo, o da raiva. A erva da qual se extrai o veneno debulhol, que dá nas matas de seu contorno e domínio.
Nem seria por vício, não fosse.

8.7.04

ELEFANTES

Um elefante no fundo do quintal nunca esteve lá. Arrepia até a última corcova da minha espinha. Elefante não tem expressão, parece fantasma. Não quer parecer ninguém.
Na cozinha tem verdura, ração pra coelho. Elefante vai comer na minha mão. Assim me refestelo no susto, faço uma história que dá pra entender.
Aproximando, olhando o bicho, à direita da cerca. Ela, tão pequena perto dele. Ração vai alimentá-lo, ele vai embora. Ou vou eu, não sei mais.
Outro elefante apareceu. Agora sim um susto de verdade. Não vou fazer mais nada. Quem mandou?
Vou esperar no quarto que eles venham me pegar.

6.7.04

ABERTURA

O nível dessas divagações está muito aquém da sua expectativa.
Não, você não sente nada por mim, nem me considera digno de qualquer valor, mas sei que a gente sempre espera.
Quanta frustração você tolera? Sabe ser surpreendido pelo que não quer?
O mundo acontece à sua revelia - já notou? Sua vontade é uma gotinha no oceano do mundo.
E, de repente, parece que já engatamos uma conversa.
Só eu falo? Não sei, não iria mesmo lhe ouvir. Se quiser, fale sozinho também. Dialoguemos em solidão.
Quem sabe daqui a pouco não viramos amigos e esquecemos aquela história de expectativa.

Não. Melhor não.
Não quero que você me considere por amizade. Agradeço, mas não.
Por favor, não insista!
(Desculpe a ousadia, você não ia mesmo insistir)
Então é isso. Não sou seu amigo e escrevo coisas que não cabem a sua expectativa.
Mas isso não quer dizer nada. Você pode até gostar. Duvido, mas pode.
Por que então teria chegado até aqui, lendo essa porcaria? Foi isso, gostou? De novo, duvido.
Talvez você tenha pena. Raiva. Vergonha. Medo. Indiferença. Isso também não diz nada. Você precisa é de vontade. Essa é a condição necessária e suficiente. Sine qua non.
Sim, sua vontade vale alguma coisa.
É uma gota que molha, que chega a incomodar. Estou agora em poder da sua vontade. Você pode me descartar, jogar num canto. Pode esfacelar meu corpo; bater na minha cara. Pode me querer morto. Pode me afagar até eu gozar na sua cara. Sei lá. Lembre: não somos amigos.
Faça alguma coisa. Qualquer uma. Por gentileza.

5.7.04

SAUDADE

Palavra

Silenciada em rima
Soletrada em prosa

Suor seco
Sina
Solidão

Saudade
Saudade
Saudade

Palavras

Saudades
Saudades
Saudade

30.6.04

DO ORIGINAL 06.01.99

Deu-nos livro aberto. Cento e noventa e duas páginas em branco indiscutível.
Pus-me a escrever – sua mão sobre a minha.
Começamos narrativa simples, polvilhada por silêncios longos, de descanso, e descrições pastéis.
Ao tempo de um susto, tornamos violência a violação. Começamos densa trama de emoções inconfessáveis.
Aperto o lápis – sua mão quase foge.
O leitor – ansioso - acompanhava cada letra em busca dos tijolos-significado que iam construindo o edifício alto do sentido.
Não lhe pediram cuidado, mas que tivesse. Um livro grande demais sempre é risco de decepção. O drama só termina no que desvelam as entrelinhas, nos não-ditos e malditos. Qualquer desenlace é possível, desde que sempre mantidos claros os motivos do autor.
Ao fim da última frase, traído o leitor. Perdera tempo com obra ordinária. Não fora avisado, mas que fosse. Comprara um livro que não lhe pertencia.

26.6.04

FEIRA LIVRE

Na feira livre, de óculos escuros.
As cores e os cheiros (se pudesse sentir os cheiros). Berros improvisando melodias apressadas. Já tarde, quase meio dia. Hora de sujeira.
Senhoras de alguma idade, vida sem nexo, nem sexo - seu orgasmo semanal. Jovens donas de casa desfilando belezas improváveis, opulentas e gostosas, belezas de chinelo e camiseta desbotada de Cândida. Na barraca ali, como que abusando da atenção que chamam, provam doces maçãs, muito mal lavadas, e tentam o feirante tarado.
Numa esquina, o homem da tapioca, calça de linho e camisa de botões. Impávido, nem nota a turbe. Homem respeitador.
Noutra, o não-autorizado vende alho, limão, maracujá – pequenos e singelos aviltes ao erário.
Calma lá! Um congestionamento de carrinhos. Todas olham pra baixo e procuram não enganchar as rodinhas. Algumas têm pés lindos.
A feira tem fruta, tem legume, tem verdura, tem ovo. Mas tem brinquedo, água de coco, lingerie, queijo, macarrão para fazer yakissoba, homem que conserta panela, homem que conserta máquina de costura, pastel, caldo de cana, ímã de geladeira, toda sorte de temperos, erva para emagrecer, erva para curar, erva para ir ao banheiro.
A essa altura do campeonato, a dondoca que se recusa a acordar cedo encontra a moça do cortiço que espera em casa o preço da feira baixar. As duas mastigam, lado a lado, na barraca do pastel. Na feira tudo é meio relativo.

20.6.04

ESTUDO

Criança estuda porque pai e mãe querem. Não gosta, vomita, pensa que mata a professora mil vezes.
Depois de tantos anos sob as asas da escola, algumas crianças inocentes se tornam adultos apaixonados pelo saber, e isso não é nada bom. Quem apaixona, obceca. Baba, defende nas circunstâncias menos razoáveis. Escudado por referências bibliográficas, fulano é capaz de passar uma vida tentando provar que a idéia dele é mais legal e que os outros são todos uns bobocas.
Algumas crianças vêm de uma família muito opressora. Uns 12 por cento. Essa turminha quando cresce costuma saber conviver apenas com o seu mundo interno, não com outras pessoas. Usufruir a companhia dos superinteligentes é consolo à merda da vida que se leva.
Um pouco maior é o grupo das crianças que se tornam adultos que não fazem sexo. Sigmund já dizia: a energia da vida é sexual, mas pode ser virada outra coisa. Não trepa, pega o livro. Alisa a página, vira uma e outra. Preenche o buraco de outro jeito.
No fundo, bem lá no fundinho, tem sempre muito de carência. Adultos se juntam por pouco, quase nada, e de repente já estão falando do catarro da bronquite da filha.
Magistério é sacerdócio. Ser professor requer, muito mais que paciência, misericórdia.

19.6.04

TÉDIO

Minhas horas às voltas com o mundo patético.
Meu tédio de mal com as horas, que não passam.
Uma solidão cortante, um nada doendo no osso.
Ódio consola.
Mulher não olha pra mim. Homem quer me ver pelas costas. Mãe não. Mãe é Virgem Maria, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Nessas horas, música é barulho, arroz com feijão é crack e heroína. E eu sou um deus, que olha pra tudo que criou e vê que tudo é uma merda.
Vai precisar de exorcista dos bons. O cão, quando sai das entranhas do inferno, não vem pra brincadeira.
Tudo toma outra proporção. Muito. É excesso. Mas eu não chora nunca.
Eis o ponto vital, seu cuzão! Eu não chora. Porque, mesmo fudido, ainda estou na carne e no molho do mundo, e juro por tudo que é mais sagrado que quero casar com essa moça que está sentada na sala ao lado. Com festa e tudo.

5.6.04

VERGONHA

Estava aqui já há horas, numa tristeza meio contida, meio autoconsciente. No lugar dos meus olhos, me escapando.
Foi só alguém abrir a porta do quarto. Olhei-me, como fosse quem me olhava, não gostando do que ela via. Senti neste súbito que ela poderia sentir até pena de mim, sem exagero. Tive pena de mim. Chorei por uma tristeza outra, carne fatiada sobre nervo exposto, que fez aquela tristeza primeira parecer de sabão.
Vergonha: perceber que o outro vê aquilo que eu veria no espelho.

3.6.04

CONFLUÊNCIAS

Tomaste um toco, amigo meu?
Repensaste a vida naquela hora?
Nada fez sentido? Entendo. Tão normal...
A um passo do momento em que parece que podes tocar as luzes, desfazer os nós, romper amarras, e o chão sobe correndo até bater a sua cabeça.
Dói muito. Aquele estalo seco, aquela aflição.
Puseste o medo na pauta da tua próxima ilusão? Haverás de considerá-lo, sob pena de expulsão do mundo dos vivos.
Não há nada de errado contigo, fora o de sempre; o destino é que dorme no ponto.
Saíste sem bater a porta, aquela diaba? Barulho?
Viverás mesmo este estar consigo constante, este saber sem tema, implícito, até que a morte te separe de ti.
Esperaste o bastante? O suficiente, ao menos?
Não tens o dom de fechar feridas, não queiras inventar moda. Há questão de merecimento, mas somente em outro nível. Aqui, não. O que entope aqui são confluências. Nem acaso, nem mérito: um pouco de tudo é igual a nada. A boca seca e o falar estúpido influem; porém, o tempo, alheio ao teu querer, também. Tua condição de vida pouco invejável atrapalha; não mais, contudo, que os caprichos de um coração que não dominas.
A admissão das confluências é catártica, exorcizante. Deprime, o que é bom, aliviando pesos da alma.
Fugiste? Se não, aproveite e fique por aí. O mundo gira. Tua vida não é. Tua vida é estar sendo. Cada passo teu, cada cinza fora do cinzeiro, cada sol e cada frio, cada gesto pequeno, tudo muda a confluência.
Quem me dera pudesse te prometer, fazer um compromisso taxativo! O imponderável é da natureza das confluências...
Mas – quem sabe – outra hora vem, daquelas de tocar as luzes, desfazer os nós, e te encontra em outra conjunção.
Ninguém nasceu pra ser feliz, mas, talvez, um dia tu venhas a ser.
Até lá? Tu escutas o ranger das portas, os passos de tamanco no corredor. Tu enxergas as paredes se acomodando, espaços mudando de lugar. Tu sentes o calor dos dias frios, a intenção das paisagens.
Ficarás sozinho por seres único. Porque, a partir de agora, só tu saberás o que todos esperam: confluências.

27.5.04

ABSCISSA

Carlo neurophysiology tulip cyrus cartridge loci statistician donkey keenan horsewomen cavalry bristol.
Syllabus daphne upend kabul solipsism confidant amra mathematician implementation pumice stake digress range perfect jacobus clinician copperfield allis gordian caulk kepler emphasis dalton arden lunge compendium pyrrhic anti tony abscissa.

25.5.04

50 LETRAS

Vovô viu a uva.
Sugou o sumo suculento.
Cuspiu a casca e o caroço.

22.5.04

HERDEIRO

(Herdeiro de um mundo encantado, sem ânimo pra ver graça no cinza, no bege. Doando expectativas, como esmola, a toda gente. Nunca viveu no arco-íris, mas jura que conhece como a palma da própria mão. Recusado ao ordinário de pegar no batente pelo óbvio de cada dia, prefere o sono longo, que invade as horas da obrigação. Há certa prepotência. Sente-se um pouco bem, um pouco mal. Nem mais, nem menos.
Tem moral, sim, mas congelada no cerne de um iceberg de negações. Falta amor-próprio, sem sombra de dúvida.
Daí - sim - a prepotência. De onde mais?)

No meio da rua:
Ele: Senhor?
O outro: ...
Ele: Senhor?
O outro: Minha pessoa?
Ele: Sim. Faz-me a gentileza?
O outro: Pois não.
Ele: Onde estamos?
(Não vamos dar risada agora, ele não sabia mesmo)
O outro: Como assim?
Ele: Onde estamos, senhor? Faria a gentileza?
O outro: Na rua. Mora por aqui?
Ele: Não sei. Se eu moraria na rua?
O outro: Suas roupas estão sujas, rasgadas.
Ele: Vi. Acordei ali atrás, quase agora. O senhor me conhece?
O outro: Certamente não.
Ele: E eu, me conheço?
O outro: Pelo visto...
Ele: A guerra já acabou?
O outro: Lembra da guerra?
Ele: Não, sou homem de muita paz interior.
(Como podia saber? Esta história está ficando muito mal contada...)
O outro: Com sua licença, preciso ir. Quando você me parou, estava de passagem. Sou esperado.
Ele: Eu junto?
O outro: Não, você fica.
Ele: Fico onde, senhor? Perdoe a insistência, ainda não me disse onde estamos.
O outro: Fica assim. Não mexe o corpo. Senta um pouco, talvez.
Ele: Fico sim. Deus lhe dê em dobro.

(Aí está, bem como eu já imaginava. Não passava de um belíssimo filho de uma puta. Viram como ele manejou a situação? Viram como concebeu um zigoto de confusão na cabeça do pobrezinho? Inoculou uma praga de gafanhotos que evolui lenta e silenciosamente, comendo, uma a uma, todas as porções de segurança e bom senso.
Cuidado, vizinhos, muito cuidado. Há milhões desses esconjurados por aí.)

15.5.04

AMOR (2)

A doida esquálida na passarela?
Nada disso. Meu amor é de compleição maciça, carnes fortes. Quase bélica, violenta.
E passa rápido como raio – nem me vi.
Espero dela o que deveria vir do sol – a luz solar.
Estranho, ela se põe do lado oposto, quase inteira. Aurora boreal obsedada.
Parece que me acompanha, mas diz que é ilusão. Que ela fica lá mesmo – sabe o sol? – enquanto vago em torno.
Um culto ruidoso, veneração gratuita, um fascínio fenomenal.
Todas as letras de um nome composto: ela.
Tudo me deixa em cacos, cego. Diminuído, longe do que querer: melancólico. O sono vem na hora errada.
Não temo, porque o amor só liberta quando escraviza. Quando é de declarações e presentes exagerados. Quando toma por inteiro e faz de mim outra coisa. Quando é, também, devoção. Quando não importa a cor do cabelo, o esmalte das unhas, e não enoja um canto de boca brilhando de maionese.
Bem lembrado, nada pesa mais que um sentido. Na busca por ele, se mata e se morre, se passa uma vida labutando de sol a sol, se escreve poesia e memorandos, cartas de adeus, se geram filhos.
E se ama uma mulher. Simples e direta, eterna e profundamente.
Uma mulher que podia perfeitamente ser apenas mais uma, e até é, mas que, misteriosamente, enche com flores o odioso vácuo da vida.

9.5.04

MULHER

Minha mulher tem um frio na barriga
Tem cheiro de não-sei-o-quê
Voz que me procura
Um choro que não chora
Orgulho de ser ela
Batuque no peito
Olho enviesado
A mão mais macia
Um pé desenhado
Harmonia
Uma alegria sozinha
Asas que eu vejo
Toque completo
Tempero fino
Gesto impreciso
Pernas cruzadas
Expressão na carne
Dedos
Eletricidade
Levanta, levanto
Senta, deito
Vai, vou junto
Vem, já estou
Pega, é seu
Todo seu
Não larga
Me faz feliz (nunca fui)
Sem perceber

4.5.04

PERFIL

Roubar um beijo ou um banco: eis a questão. Maturidade afetiva de uma criança de colo. Almost de quatro. Por ora, é só o que me vem. Quem sabe um dia sintetize num gozo todas as porras do mundo. Talvez quebre a cara. Não seria por falta de costume. O coração arde e encarde. O telefone não pára de tocar. Não procurem. O perfil do candidato não deixa dúvida: organizado, boa dicção, asseado, conhecimentos desejáveis de Windows e Internet.
Conto os segundos. Ela caminha lateralmente despreocupada, nem aí comigo.
Engraçado, ainda ontem estava no sonho. Linda, sem sentido. Agora não parece tão de verdade. O suco de maracujá vai ficar para a próxima... Encarnação.

1.5.04

CRISTO

Fiz o Cristo aqui do lado esquerdo, do coração. Ele que disse assim: quero ficar no teu corpo feito tatuagem, que é pra te dar coragem pra seguir viagem. Disse tudo e quase nem piscou, ficando bem solenemente.
Fiz nem pra talismã, nem pra amuleto, mas se quiser funcionar, não ligo não. É mais pra não esquecer nunca quem é que manda por aqui. Alguma dúvida? Isso mesmo.
Se quiser castigar, vai, castiga. Lança praga sanguinolenta, atrai sofrimentos de um mundo. Ou já me leva logo embora, então. Quer ouvir da minha boca? QUERO QUE SE FODA.
Revoltado não, que eu não sou moleque. Você que pensa que sabe da vida. Ôôô! Tinha já uma cicatriz no coração, aí outra na cabeça. Cicatriz como desenho do destino.
Fui lá e falei: faz um desenho bem bonito, depois pinta com cores e deixa o tio ver. Só não pode usar canetinha, que suja a roupa e mancha e a mãe reclama que só trabalha e ninguém tem um pingo de consideração e quer ver o dia que ela morrer como é que vão se virar.
Tinge, rasgando em preto, a pele. Faz do avesso, começa pelo verso. Depois rega de azul piscina a menina dos olhos. De rosa, a flor do cabelo. Vem de laranja nos desenganos.
Capazes eram os duendes, que só conheciam três cores: amarelo, azul ciano e magenta. Na Duendilândia nem tinha Aids, Hepatite C. Mas todas as casinhas eram iguais, e todos tinham o mesmo bronzeado. Foi nessa época que os duendes malvados roubaram as sete cores do arco-íris e não tiveram pra onde ir, tão beira-mar que era a terrinha.
Mas Jesus teve misericórdia, perdoando-os todos. Os duendes ladrões, sem certeza nenhuma na vida, voltaram atrás, se arrependeram, e entraram num reino dos céus bem pequenininho.
Veja se entende, há uma diferença: entre tudo que eu queria ser pra alguém e tudo que eu queria que alguém fosse pra mim.

24.4.04

CTRL

Upper world
Snake of heaven
Mind and soul
All the answers

The way she walks
The way she talks
The way she looks
The mirror disappears

Things move themselves

Bizarre sex
Lock failure
Misunderstandings
Bad behaviour

Repeat - Paul is dead

20.4.04

AMOR

Não sei se parece, mas ainda sou eu. O cabelo enrolou, a vida amargou. A pele ainda não enrugou, mas às vezes cheira a nicotina. A cabeça pensa rápido, um assombro. O coração? A piada de sempre. Vivo de fazê-lo graça. Cachaça faz rir e engana a fome. Quando aperta, caio nuns tira-gostos, aqui e acolá. Amor é presente de deuses, e o homem sabe lidar não.
Ainda não sou nada do que você esperava.
Ainda não aprendi a ficar satisfeito – à medida do limite não fui devidamente apresentado.
Da última vez, saltei fora na hora certa, por acaso. Mais um pouco e não teria volta.
Desde aí, dei de chorar por nada, acredita?
Amanhã de tarde devo decidir se estou apaixonado, numa reunião de portas fechadas com meu advogado. Quero ver antes se bicho de pelúcia configura assédio sexual. Pensei também em deixar o testamento pronto, pra caso de urgência. Queria deixar minha ingenuidade pra alguém. Quer?
No fim, fui vendo que não tinha ninguém – a coisa de chorar à toa. E você sabe como é criança. Papai do céu não olhou pra mim?


Mas aí eu olhei pro rosto. O que? Foi Deus também que fez? Então é verdade que Ele é Deus, que é o fodão do universo? Eu nasci pra admirar a criação. Por Deus eu vou pro inferno e passo a eternidade lavando o banheiro do Cousa Ruim. Meu sagrado então é você inteira. De dar desespero, com arrepio na espinha. De buscar o ar onde não tem, esticando e contorcendo o corpo todo.
Deus é muito ciumento. Faz tempo que não abre vaga pra anjo. A gente se ferra é nisso.
É tarde da madrugada, eu fico aqui sozinho, e Ele vai pra onde quiser. Voa por cima da tua cama, desliga a TV, olha teus olhinhos fechados, cheira teu suor na fronha, beija tua bochecha, encosta do teu lado, até. Passa a mão na tua cabeça, transfere um sonho lindo, toca o teu coração sem cerimônia. E diz: Feliz Aniversário, meu amor.

18.4.04

AMIGO

Ô, Zé! Já vai assim?
Tua mulher espera!
Bebe mais uma! Mija mais um pouco!
Güenta essa angústia.
O assunto incomoda?
Que assunto, Zé?!
A gente fala sobre nada!
Enche a goela de cachaça
Deixa esse nada te dobrar
Chega de trepar, Zé.
Você goza pra não pensar na vida!

15.4.04

PETELECO

Consiste em fazer com que a ponta do dedo indicador toque as costas do polegar de maneira que, após um átimo de atrito, o indicador seja liberado com força e velocidade suficientes para atingir algo que esteja à sua frente. Você nota um inseto andando na sua calça e lhe aplica um peteleco. Ou uma migalha de biscoito cai sobre a mesa de trabalho e você, porco do jeito que é, faz uso de um peteleco para lançá-la ao chão.
Entendida a mecânica, convém agora dizer que não são muito efetivos com líquidos. Se, ao invés da migalha, você deixar cair sobre a mesa uma gotinha de café, de nada lhe servirá o melhor dos petelecos. Por mais porco que você seja, sabe que a gotinha continuaria ali, apenas um tanto desfigurada, resistindo bravamente à sua pouco louvável iniciativa de manchar o tapete.
Petelecos também não são lá muito amigos de coisas duras e pesadas. Teve alguém que ganhou um hematoma – e quase perdeu a unha – depois de petelecar distraído um enorme cinzeiro de vidro. Bem sabido: petelecos são armas brancas de baixo poder lesivo.
Por exigir, na sua execução, apenas um dedo indicador e um polegar opositor, é possível intuir que o peteleco tenha sido criado há alguns milênios, por ancestrais do homem moderno, e figure, ainda hoje, como um dos raríssimos universais humanos.

Há um mosquito sobre a coxa esquerda de dona Mirtes, que é tetraplégica. Ela pode vê-lo, mas é só o que pode fazer. Será picada e contaminada por um parasita terrível.
Com a saúde já debilitada, dona Mirtes não resistirá à doença, e falecerá dentro de 6 dias.
Entendeu agora?
Um peteleco a teria livrado da morte.

13.4.04

VIDA

A vida aparece, em fulgurações, a alguns poucos amadores, a uns amorais, a alguns dentre os que só acordam cedo porque precisam ganhar o sustento (caso contrário, acordavam meio-dia).
A vida não se oferece aos que pensam sabê-la. E muito menos dá de si aos que têm certeza, aos boçais, aos que acreditam em si. A vida não é arte, nem ciência. Ninguém fala seu idioma. Vida é vida.
“O que você faz da vida?” – alguém pergunta.
Ninguém faz nada da vida. A vida é que faz algo de cada um de nós. Não fosse assim a vida seria muito diferente. Cada um esticaria, espicharia mais de um lado ou de outro, apararia as arestas, pintaria de outra cor, de forma que na vida só acontecesse o que já se tivesse desejado.
Mas a vida também não é de determinismos ou coisas afins. Não faz nada por querer. Porquês e quereres se metem na cabeça de quem não admite que a vida simplesmente seja.
Sonho não se interpreta; angústia não se resolve; nada sucede a lei de que tudo o que há deve ser vivido. Com liberdade, sem leviandade. Com disposição e desalojamento, sem suposição. Com tradição, contraditoriamente. Com leveza e com beleza. E por ser a vida tão bela, é também muito fácil não merecê-la. Basta um cisco, um talher mal encaixado à boca, uma cédula contaminada, uma picada no nariz. Ou mesmo nada. Um nada, e pronto: a vida deixa de ser.

9.4.04

SELEÇÃO NATURAL

Messalinas a serviço da seleção natural escondem entre as pernas um gosto entre o sem-sal e o azedo. A fome não é de comer chocolate, macarrão gostoso. Não. É fome de coisa suja, ânsia que brota de cada poro da pele do homem ao menor sinal de ventre fértil. Terra à vista, Cabral.
À noite, dunas escuras, becos fedidos, camas familiares, sacristias, de tudo emana o senso de preservação da espécie. Imortalidades capengas, sôfregas. Pau mole, logo toma uma fanta. Inveja a anca alheia.
No final, só isso. Mas aí entra a paranóia. Quer tornar a menina mulher. Quer gozar bonito pra mamãe aplaudir de pé. Pecador conturbado.
Em cada recusa dela, recusa a própria humanidade, não querendo tais e tais genes a contaminar as próximas gerações. Com certa razão, convenhamos. (Por isso, mulher mais velha é outra conversa. A biologia já dando trégua, a mulher dá por dar mesmo).
Promete flor no dia seguinte. Liga mesmo, sei que liga.
Romântico é levar boceta na cara. O resto é suscetível, aquecimento, coração, preâmbulo.

3.4.04

DESIDÊNTICO

O engenheiro da empresa era viado. E tinha dentes sensíveis e cócegas nos mamilos.
Primeiro morreu de febre. Depois voltou e foi visitar a ex-mulher, moça semivirgem. Puxou o pé do homem que dormia desavisado com ela. Depois achou que ali não era pra ele. Foi tentar a morte em outro lugar.
Ao chegar na Capital, foi ter com seu Barreira, amigo da família, que lhe foi pouco sutil e insinuou uns empecilhos:

Se você tivesse nascido gênio, filho da tua mãe, se fazia sem esforço. Mas é burro como o asno. Precisava mais dominar a malandragem.

Ele acabou ficando mesmo assim. Contaminando o espaço público, errante. Agora sabia ter ilusão nenhuma. Fez uma barriga nascer com ele de novo.
Soube da guerra, quis brigar. No posto de alistamento:

What’s your name?
My name is... I don’t know my name. And I don’t remember my first time. And I don’t have a second chance. And I don’t even know where I’m going now. I have lots of dirty thoughts, and I don’t know where they’re coming from.
OK, boy. No hard feelings. Just kidding. Nothing’s gonna change anyway.

Voltou pra casa da ex-mulher, que desta vez não o reconheceu.

Quem é?

Não deu de responder.
Ela quis se deitar com ele, não devia ter feito isso. Ele se sentiu tão traído que a dor na espinha até passou. Quis pegar a primeira faca que visse pela frente, mas estava completamente cego. E não era de raiva. Até com ceguinho a vagabunda andava se esfregando - pensou.

Até chorei ao pensar que o coitado não conhecia mais o amor. Parecia que era comigo. Também morri de febre uma vez. Também me apeguei a uma estupidez e também fiquei cego.
Sendo ninguém, a nós só resta o caráter. Somos armaduras que andam, vazias.

1.4.04

SAGRADO

Em dias de hoje, se leva tudo ao Deus-não-deu. Devotos de todas as poses, de todas as luzes que alumiam, na busca de fome pro pão nosso de cada dia (dai-nos também hoje). Sinceros e honestos ritos, carecem mitos, transbordam mistério. Sorte da vida, que de manha e gozo também se vive. Ao que pende da cruz, não dão sossego. Já sabe, não ainda? Por fazer o que eu não fiz, dá o fôlego de saber o que também não sei. Súplicas protestam apenas, fazem outra coisa não. Danado do homem – se acostuma até com a merda; depois, reclama. Vai bater tambor, até. Fora e através da ciência não científica: discernimento. Limpa a boca com água suja, coisa babada de pias salivas. Entrou no surto, já pro transe. Na chuva, pra se molhar. Criança que quer (porque quer) que a bolinha reapareça no mesmo lugar onde estava da última vez. E tudo isso muito junto, que a linguagem nem de longe me dá conta.
Vou fazer outro parágrafo aqui, ver se melhora. O tempo passa devagar e rápido demais. Aceita uma água? Um café? Você fuma? Dá um? Não, pode deixar, tenho isqueiro. Obrigado. Negócio bravo esse aí, né não? Hein? Volta lá em cima e repara: quase que eu fui. Quase surto eu. Surto sem susto, é verdade. Dá uma coisa de falar dessas coisas; quero nem lembrar. Tem um bonequinho de plástico logo ali, daqueles de colocar em cima do bolo de aniversário, festinha de criança com tema futebol. Vou brincar com ele um pouquinho.
Espera aí. Já volto.

30.3.04

SONHO

Sonho antigo é abraço de urso.
Velha bicicleta BMX Monark, pneus azuis. A rampa que se fazia de madeira, apoiada em tijolos.
Salto.
Quem sabe a morte?
Não. A glória.
Moleque tonto de se contentar com pouco. É feliz - e sabe.
Ainda não era salto para a eternidade. Era pra ser alguém. Que mãe e pai vissem os dotes do filho. Que vissem todas as meninas da rua, melhor ainda.
Vida da rampa sob rodas. Aprendesse ali tudo que precisava pra subir na vida: sempre chegava a lugar nenhum. Vôo de passeio.
E soubesse a cara de sem graça no tombo. Escárnio dos outros. Levanta rapidinho. Faz que nem doeu. O sangue na coxa ralada.
Vai lavar, moleque! Pega tétano, não brinca!
Como não? Brinca sim. Brincadeira é existir uma coisa que não existe.

28.3.04

SAPATEADO

A mocinha crescia um pouco. Parava de estudar na quarta série primária, e olhe lá. Reclamava, aí o pai até batia. Menina boa, burrinha das idéias. Aprendia isso bem cedo - tinha nem peitinho. Ia aprender bordado e culinária. Deixava de ser a filhinha querida do seu Fulano, ia tentar virar um bom partido. Um cabaço no mercadão dos bem-dotados.
Momento mais importante da vida. Conhecia marido bom, tinha vida boa. Conhecia marido ruim, bosta de vida.
Ideal de feminino? santa-maria-dona-de-casa. Mulher bordando almofada e fritando bisteca dá mesmo muito tesão. Mas chega por aí. Pode trepar com a mãe não, filho da puta. Aqui no seio sacrossanto do lar não se faz essas sujeiras. Aqui se constrói uma família. Quer cu, vai pra rua comer vagabunda!
Era assim. Lembro não. Mas ainda é. Lembro sim.
Evitando constrangimentos e cisões, toda mulher devia sapatear. Segredo do universo: uma mulher sapateando é gracejo e sacanagem numa coisa só.
Faz assim: sorriso de lua minguante, mexe o pescocinho pra lá e pra cá; braços esticados, mãos espalmadas (tudo discretamente anos 20, pra só reparar quem manja). Mexe as pernas, faz um barulhinho. Mexe mais, barulhinho. Piano, piano.
Que pernas... Se a moça faz aquilo tudo de pé, imagine o que não faz deitada, amigo.

e não é que eu consegui fazer essa porra!?