22.5.04

HERDEIRO

(Herdeiro de um mundo encantado, sem ânimo pra ver graça no cinza, no bege. Doando expectativas, como esmola, a toda gente. Nunca viveu no arco-íris, mas jura que conhece como a palma da própria mão. Recusado ao ordinário de pegar no batente pelo óbvio de cada dia, prefere o sono longo, que invade as horas da obrigação. Há certa prepotência. Sente-se um pouco bem, um pouco mal. Nem mais, nem menos.
Tem moral, sim, mas congelada no cerne de um iceberg de negações. Falta amor-próprio, sem sombra de dúvida.
Daí - sim - a prepotência. De onde mais?)

No meio da rua:
Ele: Senhor?
O outro: ...
Ele: Senhor?
O outro: Minha pessoa?
Ele: Sim. Faz-me a gentileza?
O outro: Pois não.
Ele: Onde estamos?
(Não vamos dar risada agora, ele não sabia mesmo)
O outro: Como assim?
Ele: Onde estamos, senhor? Faria a gentileza?
O outro: Na rua. Mora por aqui?
Ele: Não sei. Se eu moraria na rua?
O outro: Suas roupas estão sujas, rasgadas.
Ele: Vi. Acordei ali atrás, quase agora. O senhor me conhece?
O outro: Certamente não.
Ele: E eu, me conheço?
O outro: Pelo visto...
Ele: A guerra já acabou?
O outro: Lembra da guerra?
Ele: Não, sou homem de muita paz interior.
(Como podia saber? Esta história está ficando muito mal contada...)
O outro: Com sua licença, preciso ir. Quando você me parou, estava de passagem. Sou esperado.
Ele: Eu junto?
O outro: Não, você fica.
Ele: Fico onde, senhor? Perdoe a insistência, ainda não me disse onde estamos.
O outro: Fica assim. Não mexe o corpo. Senta um pouco, talvez.
Ele: Fico sim. Deus lhe dê em dobro.

(Aí está, bem como eu já imaginava. Não passava de um belíssimo filho de uma puta. Viram como ele manejou a situação? Viram como concebeu um zigoto de confusão na cabeça do pobrezinho? Inoculou uma praga de gafanhotos que evolui lenta e silenciosamente, comendo, uma a uma, todas as porções de segurança e bom senso.
Cuidado, vizinhos, muito cuidado. Há milhões desses esconjurados por aí.)

Nenhum comentário: