22.10.05

DORES

Com o humor carcomido pelas inextinguíveis dores subliminares, Joca ensaiava um assovio no intervalo entre as calçadas direita e esquerda. Receava-lhe a idéia de contar a alguém que seu corpo tornara-se nos últimos anos um palco apertado para que pequenos grupos de teatro amador encenassem pequenas tragédias gregas. Uma dor de cabeça fininha como xixi de passarinho; dores intercalando as diversas articulações - joelhos, tornozelos, pescoço, cotovelo, falanges; e, mais recentemente, a aguda manifestação de uma fístula anal.
Se faltavam os brados e clamores dos grandes espetáculos, a exemplo do que acontece na fase terminal de um câncer, havia a constante presença de atores que declamavam Sófocles desfocados e sem vida, ainda sem a impostação necessária na voz, para ínfimas platéias, quase sempre compostas por amigos e familiares mais próximos.
E, como receasse, então exercitava um acostumamento.
Como a roupa que se veste violentamente sobre a pele quase etérea de um recém-nascido; como um relógio de pulso cuja pulseira começa a comprimir; como calçar um sapato de número menor - todo incômodo se acomoda. O sujeito humano tinha por condição a possibilidade de adaptar-se a quase tudo. Inclusive à merda.
A dor era só mais um nome; só um nome.

21.10.05

SUICÍDIO

Sem brincadeira, eu acabei de pensar em me matar.
Ia pular aqui pela janela mesmo, do 11º andar.
Por falta de motivo, achei o clima propício. Uma tarde de sexta-feira; um calorzinho bossa nova, de acumular na testa gotículas de suor; um sonzinho do Smiths.
Mas sempre depois de um suicídio a família e os amigos dão de buscar explicações... explicação eu não daria; sequer deixaria bilhete (a impressora estava sem papel). Investigariam.
Aí, quando dessem de olhar o computador, ainda ligado, e percebessem que a última música que eu ouvi foi "The boy with the thorn in his side", todos, sem exceção, passariam a achar que eu, esse tempo todo, era gay e não tinha coragem de assumir.
Mudei de idéia
ESPELHOS

Estados e situações
e roupas usadas
espasmos
largados, viados
cigarros fumados
içás vomitados
os braços sangrados
as sortes, massacres
escarros bastardos
filhotes mirrados
estalos, espaços
chicles mascados
engasgos safados
angu empapado
um galo sambado
e desenfreado
lançou-se ao muro
do ninguém-me-quer
esteve na vida, tão longe de tudo
mulato saltado
virou a notícia
rasgado, matado
na porta do bar.

14.10.05

ALMA

Se era pra ser tão indiferente, melhor seria ter ficado em casa. Não sujaria sequer o párabrisa do carro; muito menos a alma.
Tão perto da lama, que afastasse ao menos o longo vestido branco de chita; mas não. Foi de picareta na mão, a desbravar a argila demudada em barro.
Até os olhos ficaram marrom.

11.10.05

CAIPIRA

Da transversa se disseminava uma pasmaceira doce. Cá, onde já fumávamos as cigarrilhas aos pares, tão lindas eram as cinzas vertidas no calçamento, e tão bem cozidas as fumaças que abrumavam, a dor ainda era lenta, quase perdida – uma dor de cabeça debaixo de um chapéu de palha.
A poeira não era mais da secura da areia, do calcário, do limo, da argila. Era mais dura e melosa; indícios da cidade grande.
A pangaré puro-sangue mascava um capim quase seco, com cara de ontem, que graça não devia ter mesmo nenhuma. Mas dera de ser assim, oras bolas, o que mais a bicha haveria de fazer?
Fazia graça de nós, tremelicando às vezes uma porção pequena da anca marrom pra espantar algum mosquito. Mostrava como se fazia sem fazer, sucedendo algo sem deixar a passividade.
Apeada, olhava dentro dos olhos nossos, mascando também o tempo.

10.10.05

DEFEITOS

Posso ter três mil defeitos, mas entre eles certamente não se encontra a danosa tendência a tolerar defeitos.
Posso - sim - ostentar os mais impublicáveis, e justificar sua manutenção recorrendo às determinações involuntárias, aos quereres inconscientes, pelos quais o homem médio não precisa se responsabilizar há pelo menos cem anos. Mas não devo admiti-los nos outros, quando estou de plena posse de minha capacidade crítica.
Eis: uma intolerância referendada pelo bom senso.

6.10.05

CLARISSE

Clarisse Morávia gelava um coração ardente só de olhar de viés.
No oposto desse diâmetro, sua desejabilidade exalava até pelos calcanhares. Sem exagero. Mocassins ou Mules, botas e tênis - acredite, mesmo uma sandália havaiana - valorizavam tão grandemente este detalhe, em outra dona completamente desinteressante, que nem o mais intrépido estoicismo se safava. Uma redondilha em si.
Ah, os vapores que se faziam perceber... Nunca quisesse ouvir o som do salto estalando no piso de madeira. Nada mais hipnotizante. Nada.
Naquele dia, o próprio couro sobre o peito do pé, suas pequenas nuances de movimento, o balançar dos dedos ali debaixo, tudo era motivo.

5.10.05

TEKS

Vida entre fauna e flora, direita e esquerda, Apolo e Dionísio, bem e mal, claro e escuro, côncavo e convexo, Red Label e Black Label, amor e paixão, saúde e doença, céu e inferno, homem e mulher, Deus e Diabo, destro e canhoto, sim e não, jóia e bijuteria, Davi e Ronald Golias.