22.10.05

DORES

Com o humor carcomido pelas inextinguíveis dores subliminares, Joca ensaiava um assovio no intervalo entre as calçadas direita e esquerda. Receava-lhe a idéia de contar a alguém que seu corpo tornara-se nos últimos anos um palco apertado para que pequenos grupos de teatro amador encenassem pequenas tragédias gregas. Uma dor de cabeça fininha como xixi de passarinho; dores intercalando as diversas articulações - joelhos, tornozelos, pescoço, cotovelo, falanges; e, mais recentemente, a aguda manifestação de uma fístula anal.
Se faltavam os brados e clamores dos grandes espetáculos, a exemplo do que acontece na fase terminal de um câncer, havia a constante presença de atores que declamavam Sófocles desfocados e sem vida, ainda sem a impostação necessária na voz, para ínfimas platéias, quase sempre compostas por amigos e familiares mais próximos.
E, como receasse, então exercitava um acostumamento.
Como a roupa que se veste violentamente sobre a pele quase etérea de um recém-nascido; como um relógio de pulso cuja pulseira começa a comprimir; como calçar um sapato de número menor - todo incômodo se acomoda. O sujeito humano tinha por condição a possibilidade de adaptar-se a quase tudo. Inclusive à merda.
A dor era só mais um nome; só um nome.

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