28.11.07

VERTIGEM

O mundo vira
Vertigem

Prazer em decorar
mas o odor da tinta
faz girar

Enjôo
de leve assusta

O medo da vida
o medo da morte
do câncer terminal

27.11.07

TEMPO

Impossível resistir à crueldade inexpugnável:
'Inda maior que a certeza da morte
É a de que o tempo não volta

7.11.07

SONHE COM OS ANJOS

Quem se importa com o sonho?
Quem ainda ousa sonhar
o sonho que mantém desperto
o sonho que faz suportar?

11.10.07

A GIULLIA

Se eu soubesse a diferença que faria
na minha vida estar contigo
ia antes te conhecer
Estaria no berçário, sem ninguém saber
escondido em roupas brancas, disfarçado de clínico
E, quando todos vacilassem, invadiria o centro cirúrgico
e te traria à luz, segurando tua muito frágil cabecinha
quando, desconfiada, deixasses o ventre de tua mãe
E velaria teu choro, teu primeiro escudo neste prélio
seguraria teu pouco corpinho nos braços, desajeitado
como o despojado toma nas mãos uma jóia
e te apresentaria ao mistério do mundo

Começaria antes a criar histórias bonitas
Aquelas que só você conheceria
do gatinho Leléu, do Chum-chim-chum e da Filismina
E depois que o sono te levasse
contemplaria tua face tranqüila
e faria uma prece pelo teu nome
(que eu não escolhi, mas escolheria...)

Se eu soubesse a diferença que faria
na minha vida estar contigo
e ainda que o destino pudesse nos separar
eu manteria no coração um cantinho colorido
um quarto como você sempre sonhou
pra lá você sempre morar

Mas a mão invisível que de ti me aproxima
e o sentido imperioso desta missão
são o amor, menina

Leva-me contigo
e na vida serei teu amigo
e meu filho será teu irmão

29.8.07

INTELECTO

Reza, com toda força, pela preservação da tua inteligência.
Em breve assistirás ao ocaso da razão prática.
Teu intelecto estará disponível para download na world wide web.

22.8.07

ESTAPAFÚRDIO

Por esses dias andei de braços com o estapafúrdio,
uma vida em seu momento mais inútil, duro e nu.
Acalentando a vileza da orgia de seus prazeres, odiando ao mesmo tempo
Num estado mental confuso, triste, desesperançado, sem saída
Nem sentido

Imerso nesta inospitalidade, quis me jogar fora
Ou manter-me eternamente paralisado, não sei bem (nem sei se faz diferença)
Novas mensagens não cessaram de chegar – tantas urgências...
Mas meu tempo não lhes concedeu um segundo de atenção

Ocupações não fazem de mim quem sou
Ao contrário, me corrompem, me usurpam, me dilaceram a cada passo
A cada ida ao banco, a cada visita ao mecânico, a cada compra na padaria
Asneiras que não incomodam ninguém, e parecem me roubar o ser...

Hoje acordei melhor

9.8.07

EMPATIA

Não sei se o compadecer exalta meu caráter. Ou sua falta.
Se expõe minha sensibilidade. Ou fraqueza.

1.8.07

CRÍTICA

Sendo tão específico quanto meus alvos, me faço apenas um modo de ser outro, uma ignorância outra, uma loucura outra, uma pretensão outra.
E não me basta.
Que são meus pares, é o que não vejo.
Ajudaria.

27.6.07

BLOG

O indevassável diário da donzela de outrora hoje virou blog e divulga, a quem quiser ver, o que então eram segredos impublicáveis.
Mas a sanha expressionista também já não é privativa das donzelas, quase extintas. Essa angústia nem é mais tão precoce. Seus alvos, embora mais velhos e experientes, sentem, cravada na carne, a mesma inospitalidade.
O público e o privado finalmente fornicaram, e os pensamentos mais íntimos ocupam o espaço coletivo como se, berrando por atenção, explodissem as frágeis fronteiras de seus sujeitos.
Para além da catarse, inerente ao fato, nada se elabora, nada é revisto, nada acontece de mais relevante.
Blogs são armários onde hoje, já adultos, depositamos, literalmente, nossas adolescências tardias.

15.5.07

MOLAMBO

Ô, molambo episcopal, às favas com a gratitude! Joga esse escapulário no ralo, não é sobre isso que eu quero falar! Nem que fosse da tua competência, hipótese improvável quanto inglória. Terias que delega-la, pois a vivência alguma não poderias recorrer em prol da justeza do teu arbítrio. Nada sabes dessas mundanidades, a ti interessando mais as asceses (em casos como o teu, sempre há mais de uma – ao menos, três, para ser rigoroso: o desejo, o saber e a paz. Por isso, o plural).
Os assuntos se intercalam, desfilando graus diversos de proba dignidade e vil degradação, sem que te aflijam, nem quando és interrompido pelo som de aplausos. Desafias célebres teorias, forjadas dentre os maiores gênios humanos, como se não fossem páreo a ti, uma indelével parceria com o Divino a te proteger do erro. Mesmo ao comentares as estruturas mais perversas, tua língua não se debate, tua boca não pragueja; encurva-se ao palato, como em oração, prepara a vocalização certeira: Não!
Não haverás de tolerar a desarmonia numa tua apresentação. Não. Teu passado sinistro não há de emergir desde a viscosidade pantanosa da vereda em que o encerraste. A não ser que... Pois então sinta, a título de ilustração (ah, como o tom professoral caberia melhor se dito do púlpito de teu cientificismo místico!), o escorrer frio do lodo pelas tuas pernas, despenhando-se do períneo, por osmose. Teu suspiro mais forte, uma tosse, um gesto atrás da orelha, vai!, tenta, em tua desesperança, chamar a atenção da platéia!; não permitas que sintam o cheiro fétido, que te surpreendam já as meias enlameadas. Não te mexas abaixo da cintura, perderás mesmo os sapatos. O couro nunca mais se recomporá. Reze agora pelos pés.
Como sentes?
Moralistas de merda, temos aos borbotões. És mais um, só.

3.5.07

FENO

Chamaram-me escuso,
acusaram-me fenda no caráter
sabidamente pleno

Não sou cavalo, escuso
mas não me suportem
em seus baluartes

Não fui de entregas
nada concedi
Subitamente, me escondi no feno
E fugi

16.4.07

TATARAVÔ

Meu tataravô era uma bactéria extraterrena. Viajou encapsulado num berço de minérios por uma porção ínfima da vastidão, o acaso trazendo-o a esta atmosfera privilegiada, onde puderam nascer meus avós, pais e filhos.
Tivesse alma, e o impacto talvez pudesse tê-lo traumatizado mais profundamente, às entranhas. Mas era incomensuravelmente pequeno, faltando bem pouco pra ser nada mesmo. Era simples por demais, não lhe cabendo, portanto, desenvolver complexos.
Mas logo foi se reproduzindo, imoderado que só ele, sem qualquer cerimônia, como se a nova Terra não lhe fosse estranha. Há quem não defeque em casa alheia, que o diga trepar. Mas o velho-bactéria, ah este não. Mal chegou e já foi fazendo amor. E seu amor seria o mais importante de todos, pois daria origem a tudo que ali já havia. E fez esse amor com ninguém além de si mesmo, masturbatório, roçando em prófases e anáfases as zonas erógenas do seu DNA.
Breve como semente fecunda, morreu antes de testemunhar a disseminação de sua descendência por todos os recônditos do planeta.

26.3.07

FESTA

Dizer que ela mexia as cadeiras, além de clichê e vulgar (ela não merece isso), seria largamente mentiroso.
Ela era uma superioridade indulgente, uma beleza simpática, daquelas cujo vislumbre dá um "Deus me livre" na espinha, um gelado na barriga, um tremor mais embaixo. Principalmente, lá pelas tantas, um tremor mais embaixo.
Na festa, não se espalhava como umas e outras. Dava-se aos goles, passando, ora pra cá, ora pra lá. Dançando, discreta. Sorrindo, discreta. Mexendo no cabelo, como se não o fizesse.
Não era fácil imaginar-se confessando à beldade os desejos mais profundos que sua presença era capaz de provocar. Ela parecia que não entenderia, ou que se ofenderia. Não era mulher pra essas sujeiras.
Mas a cabeça só fazia pensar que era.
ABSTRAÇÃO

Por fim, acabara a abstração.
Não por força dos abismos em que caía o imaginário em tempos como aqueles, mas pela irrepreensível conduta do fenômeno concreto.
Acabara. Como um pacote de biscoitos finos amanteigados.

Ela soubera de soslaio, não se importando muito com essas amenidades.
Passou a mão na bolsa e saiu, desfiguradamente interessante.

20.3.07

GADO

Extraviado no mato
Solto, a rodo
O pacto fora destituído
Intacto

Desconhecido caminho
Cabana? Ventre?
O espinho da flor
Entre os dentes

A guerra e o torpor
Não iludem
Ainda que mude
Da terra o sabor

Soberbo açodado
Esconde a floresta
Entorna o que resta
Vil como gado

6.3.07

MORNO

Se tem da rosa o lenho espinho, prefiro a gérbera e o cravo.
Só quero o doce e o salgado, não o azedo e a cica.
Ponho o pé na estrada, posto que não pisem nos meus calos.
Empunho a espada da justiça usando luvas de pelica.
Pretendo ser livre, mas nunca solto.
Penso em dar aos pobres, e consulto o contador.
Eu sou meio, eu sou morno.
Quero mudar o mundo sendo quem já sou.
Quero fazer contra-cultura bebendo bordeaux

Eu sou emancipatório, reacionariamente.
Eu quero meus filhos felizes, mas que sejam inteligentes.

5.2.07

NOITE

Ela me gritava um sorriso surdo
E os amigos: "burro, chame pra dançar!"
As coisas não acontecem assim tão de repente
Eu pedia: "sente, vamos conversar"