30.10.04

ZUMBI

Às vezes pensam que os carros bateram tão forte que eu morri. E que agora é só a réstia andante, carregada feito mortalha, que o corpo carrega adiante. Full of dreams, full of misery.
Tudo porque há algo que se lança fora, e que não faz falta, faz pouco caso. O vômito de um zumbi golfado de discurso torto, bem hipócrita. Idéias ainda de vida, que não pode a morte digerir. Um além-túmulo silencioso e decrépito, percorrido por uma espinha formolada que procurava o que fazer.
O morto-vivo perguntava a todos o que era, a quem servia, mas não lhe ouviam. Apenas davam de ombros a uma sensação esquisita que lhes percorria o abdômen, um frio enjoado, quando da proximidade dele.
Não se suporta o aparecimento velado de um monstro desses, uma aberração, contradição da ordem mundana e da bondade divina. Só por dinheiro se daria um cisco de consolação a esta pobre e penada alma. Mas não havia.
Tentou um latrocínio, se ofereceu pra matar por encomenda, diminuiu a intenção do crime, puxou carteiras dos bolsos. Mas nada deu muito certo. Gastava tudo consertando o que havia estragado durante a maquinação. Perna esfolada, braço quebrado, olho furado, bala perdida.
Um emprego não poderia mesmo pleitear, seu currículo era danado de feio. Mas achou que podia ganhar prestígio, o dinheiro mais usado no inferno.
Começou a vomitar de novo os discursos que tinha, de cima de um caixote amadeirado, esperando a multidão se acotovelar.
Ninguém veio. Ou melhor, quase ninguém (teve o sacana que ofereceu o megafone).
Afinal, viam ou não viam que ele estava ali? Ele estava ou não estava ali?
A que estranho estado intermediário da vida e da morte aquela criatura referia?
Quando não há pai, não há mãe, não há Deus e não há auto, o que é salvação?

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