21.3.05

PALHAÇO

Se não me perguntares quem sou, eu sei. Mas, se me perguntares, não faço a menor idéia.

Sou o palhaço que se aquieta na tristeza, à espera de um sentido que lhe alcance. Alimento-me de fundinhos de panela. Só não me peça pra tirar a máscara, que ainda não quero assustar ninguém.
Quando era criança, me achava feio, bobo, esquisito – um completo desafio às mais primitivas formas de afeição. Pra não morrer sem graça, fui vendo que só me restava desprezar antes. O mundo desprezível. Belas criações divinas, desgraçadas pela multidão de lixos que as assolava.
Mas o desprezo não estava na minha natureza, e tive que arranjá-lo. No mercado, meu dinheiro só comprava desprezos de segunda mão, dos mais vagabundos, que viravam pó e deixavam a gente na mão. Comprei.
Mas era mais o amor que se achegava. Amor, desobediente amor. O sentimento mais egoísta dessas paragens, ao contrário do que diziam os padres. A cada investida dele, uma lufada de desprezo barato.
Depois, não sei direito, acho que percebi que era dor a dor que deveras sentia. Que a coisa toda não era brincadeira não.
À merda com quem quiser tirar sarro da minha cara! Às favas com quem puder me machucar (desvelar a máscara, por exemplo)!
Agora parece que dei uma alienada (Agora = não a extensão temporal que se entende como presente. Agora = agora mesmo, já).
Permita que eu volte sozinho... Duas ou três frases atrás... Na coisa dos padres...
Todos deveriam estar maculados pela co-responsabilidade do pecado original. Mas não só. Eram todos sujismundos que se orgulhavam de chafurdar. Que achavam tudo normal. Assim, todos deveriam ser odiados por Deus, meu pai. Pecadores de bosta, já para o inferno! – diria meu Deus, enquanto eu ficaria a sós com as doze virgens do destino, por não cooptar com aquele regime. A mim restaria a pureza, o bem, mantos, capas santuárias, feitios de linho.
Em resumo: se era pra me destacar da cartela de figurinhas autocolantes que constitui o mundo do ‘a gente’, que fosse para me colar no álbum, e não para jogar fora, ou pr’alguma criança brincar de grudar na estante até eu perder a cola.
Mas, prossigamos.
Antevi logo possibilidades outras. Carmelo era um monge impoluto, sério, um exemplo de homem. Estudara trapézio com as bruxas. Quando se virou de ponta cabeça, caíram de sua túnica trezentas e catorze fotos de crianças nuas. Carmelo viu, então, que era o mais abjeto dos seres, e suicidou-se.
Era disso que estava falando. Carmelo matou-se? Não! Foi a ira divina que sobre ele exerceu sua maldição, as bruxas conduzindo.
Imagine o risco de amar uma pessoa dessas. Antes não era de se preferir o desprezo, o ódio mesmo? E se ele quisesse passar o resto da vida ao meu lado, e eu deixasse? E se não percebesse o volume das fotos escondidas sob o tecido?
Assim, fui pintando a cara. A tinta virando borracha, aderindo. Como a máscara do Fofão.
Fui palhaço por excesso de opção.

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